Apenas a rede pública de ensino de Juiz de Fora atende cerca de 100 mil estudantes, considerando educação básica e superior e excluindo dessa conta a rede privada. O número equivale a 17% da população local, estimada em 570 mil segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quando compreendidos pais, docentes e demais funcionários, é possível avaliar a dimensão da chamada comunidade escolar, que há mais de dois meses enfrenta um cenário inédito, historicamente provocado pela pandemia da Covid-19. Igualmente sem precedentes, o impacto da crise gera debates acalorados e imersos em incertezas. Retrato de uma realidade que se estende país afora, Juiz de Fora reúne distintas respostas ao momento, dos colégios privados com aulas transmitidas on-line, respeitando grade anterior ao isolamento social, às redes municipal, estadual e federal praticando de atividades complementares até o silêncio absoluto. Consensual entre especialistas é a avaliação de que o presente escancara deficiências pretéritas, de uma educação que ano após ano padece com investimentos e políticas públicas deficitários. “O que está sendo feito pelos estados e municípios hoje é mitigação de dados. Vai haver perda”, constata a diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas, Cláudia Costin, diretora sênior para educação no Banco Mundial entre 2014 e 2016.
Segundo Cláudia, especialista em administração pública e ministra da Administração e Reforma do Estado durante o governo Fernando Henrique Cardoso (entre 1995 e 2000), para compreender a situação da educação durante a pandemia é preciso dar um passo atrás e entender o cenário anterior. “O Brasil vive uma crise de aprendizagem muito grande. Quando consideramos que 55% das crianças saem analfabetas do terceiro ano do Ensino Fundamental no universo das escolas públicas, e que, no final do terceiro ano do Ensino Médio, só 9% sabem o necessário em matemática, há uma crise de aprendizagem instalada. Tentou-se fazer, nos últimos anos, muita coisa em relação a isso. Agora nós temos uma Base Nacional Comum Curricular, que não é perfeita, mas é um avanço. Os países que têm bons sistemas têm currículos. Houve avanços em termos de esforços, mas ainda vivemos com um problema. Quando olhamos para a possibilidade de crianças e jovens ficarem meses sem aula o risco é tremendo de essa crise de aprendizagem piorar e a desigualdade educacional, que já é bem grande no país, se aprofundar”, avalia ela, pontuando como positiva a combinação de ações identificada em grande parte dos estados do país e ao redor do mundo, com orientação para os pais sobre o que fazer com as crianças, especialmente para a educação infantil: atividades on-line; televisão; e caderno de atividades, para aqueles sem acesso à TV e internet. “Alguns municípios estão seguindo seus estados e, outros, estão com as próprias estratégias. Infelizmente o Ministério da Educação está ausente”, critica.
Apreensão
“É um cenário preocupante”, aponta o professor da Faculdade de Educação da UFJF André Martins, doutor em Educação. “O Brasil caminha na direção de negar esse direito a milhões de pessoas e trabalha com a concepção equivocada de que os avanços tecnológicos poderão render economia, reduzir despesas”, concorda Núbia Aparecida Schaper Santos, também professora da Faculdade de Educação da UFJF e coordenadora do grupo de pesquisa “Linguagem, Educação, Formação de Professores e Infâncias”. “Já há relato de professores sobrecarregados e cobrados por conteúdos on-line; famílias estressadas, sem saber como devem conduzir o processo e crianças irritadas pelo excesso de atividades, muitas vezes, obsoletas. Não por acaso, o áudio de uma criança dirigida a uma professora tenha viralizado na internet. Dizia a criança que a mãe não tinha jeito de professora. Sim, porque o professor é um mediador qualificado, fez formação específica. Escola é vida, é afeto, é toque. O impacto é visível e tende a ser maior se continuarmos com a visão utilitarista da escola e da educação”, observa Núbia. “Se mantivermos a obsessão pelo produtivismo escolar, aprofundaremos as desigualdades educacionais e comprometeremos a saúde mental dos estudantes”, acrescenta Martins.
Para Thaiane Pereira, coordenadora de projetos do Todos pela Educação, organização sem fins lucrativos mantida por empresas brasileiras, dentre elas as fundações Itaú Social e Lemann, os impactos da crise será sentido por toda a comunidade escolar, já que a interrupção das atividades foi feita de forma abrupta e medidas foram tomadas sem que discussões fossem aprofundadas. “As soluções colocadas são importantes, tinham que ser adotadas, mas possuem efeito limitado. Não são e estão longe de ser substitutivos da escola e não dão conta de endereçar tudo aquilo que os alunos deveriam aprender dentro das salas de aula num contexto normal”, reconhece. “O que a gente pode esperar é uma ampliação da desigualdade, o que é muito preocupante, e a saúde mental das pessoas, tanto de professores quanto de alunos, será muito afetada e deverá ser pensada para a retomada às aulas.”
‘Cancelar o ano letivo seria a pior opção para todos’
A desigualdade no ensino reside, principalmente, no abismo que se forma entre estudantes completamente paralisados e aqueles cuja escola manteve atividades, ainda que à distância. Conforme especialistas, existem outras medidas para atenuar tal distância sem que para isso o cancelamento do ano letivo seja colocado em ação. “Cancelar o ano letivo é uma opção bem ruim. Primeiro precisa ter uma normatização, para entender o que vale e o que não vale. Já teve a flexibilização da carga horária, e as redes já podem flexibilizar. O mais importante agora, em relação a cumprir o ano letivo, é que as redes já comecem a pensar, com urgência, no volta às aulas, para tentar recuperar o tempo perdido, fazendo um planejamento com cuidado, escutando os professores, observando as possibilidades de extensão das jornadas e respeitando as questões de saúde envolvidas. Cada caso será um”, alerta Thaiane Pereira, indicando a necessidade de prever redução de alunos por sala e a opção por espaços mais arejados “Temos que lembrar que ano letivo, ou série, é uma convenção: o que os meninos de 12 anos precisam aprender, por exemplo”, observa Cláudia Costin.
“Estamos vivendo um risco muito grande de termos alta evasão escolar. Nesse contexto, é importante entender a diferença entre crianças e jovens de escolas particulares e públicas. Na escola pública, temos uma defasagem idade/série (dois anos ou mais do que a idade correta para determinada série) muito grande, e a consequência é muito séria, porque se tenho 14 anos no 6º ano, em que deveria ter 12, quando vou chegando mais próximo do Ensino Médio, se eu repetir de ano mais uma vez, as chances de eu abandonar a escola são tremendas. Invalidar o ano letivo traz esse risco de abandono escolar e não é o que os outros países estão vivendo. Se conseguirmos voltar em julho, vale a pena contabilizar o tempo em horas/aulas gasto em atividades à distância e, no retorno, usar os sábados como se fazia antigamente e usar o tempo de atividade em casa”, sugere ela, secretaria municipal de educação do Rio de Janeiro de 2009 a 2014, na gestão de Eduardo Paes. Para Cláudia, deve haver um sistema sólido de recuperação de aprendizagem, que envolva, inclusive, uma avaliação diagnóstica. Segundo o professor e pesquisador André Martins, o momento exige novos pensamentos e práticas. “Penso que não devemos forçar uma suposta ‘normalidade’ pedagógica em um momento de excepcionalidade histórica”, afirma.
Tecnologia na educação X educação a distância
Usar novas tecnologias na educação não é o mesmo que usar a educação à distância, enfatiza André Martins, organizador do livro “Educação Básica: tragédia anunciada?”, (Editora Xamã), ao lado da pesquisadora Lúcia Maria Wanderley Neves. “De forma bem objetiva, a educação a distância é uma modalidade de ensino em que a mediação pedagógica ocorre com auxílio de tecnologias de informação e comunicação em temporalidades distintas do ensino presencial. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece que a educação a distância pode ser acionada em ‘complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais’ para o ensino fundamental e para o ensino médio, mas não para a educação infantil”, explica, pontuando que tal decreto se direciona principalmente ao ensino superior e que a situação atual, da pandemia, poderia “forçar” uma adesão de instituições de educação básica. “A legislação brasileira não autoriza a transformação do ensino presencial em ensino a distância de forma automática. São modalidades distintas e com dinâmicas pedagógicas próprias”, acrescenta, chamando atenção para a escassez de pesquisa e estudos acerca da modalidade voltada para crianças e adolescentes.
“Defendo que a educação deve acontecer de maneira presencial, com a atuação dos professores e professoras na condução desse processo. Nas interações, nos conflitos, na partilha, nas brincadeiras, crianças e jovens vão se constituindo, construindo a subjetividade e aprendendo a olhar o mundo a partir de outras lentes. Isso se dá na presença, não na tela. O espaço da casa deve ser preservado e não deve se confundir com o espaço da escola”, avalia a professora e pesquisadora Núbia Schaper, que investiga o desenvolvimento e a aprendizagem de bebês e crianças. “Uma das linguagens da criança é o movimento. Ela precisa explorar, tocar, observar, contemplar, experimentar, sentir para criar e recriar o mundo. Ela precisa do encontro com outro humano para se tornar humana. Neste sentido, os efeitos são diferentes”, ressalta.
Paradigma
Para Cláudia Costin, o uso das tecnologias na educação é um paradigma que deve ser quebrado e que a pandemia contribui para tal rompimento, ainda que não tenha permitido uma problematização maior e anterior à adesão de algumas escolas. “A resposta educacional à Covid está se constituindo no processo. O fato de que professores não eram tão incluídos digitalmente _ e ousaria dizer que os alunos são mais incluídos _ vai, de algum jeito, acelerar a inclusão digital dos professores. Vão acabar tendo que lidar com isso e vão aprendendo no processo”, diz, apostando que a tecnologia irá adentrar o universo da educação de maneira definitiva após este momento. “Não necessariamente da forma como está sendo usada agora, mas entrará num processo de aperfeiçoamento das ferramentas sob a liderança do professor. Hoje sabemos que existem instrumentos tanto para aprimorar a aula do professor, permitindo-o avaliar de maneira mais fácil como os alunos estão aprendendo o que precisam para avançar mais. Sabemos que os jovens se engajam mais com o mundo digital, mas não basta pegar a aula presencial e colocar na internet que se resolve o problema. Existe um design instrucional dentro de cada curso e a tecnologia pode ter um papel”, sugere.
Thaiane Pereira, do Todos pela Educação, reconhece que a tecnologia não substitui o professor e não vai transformar radicalmente o processo de ensino e aprendizagem, “mas precisa ser muito mais usada, para diversificar estratégias pedagógicas e ser uma aliada. Fica um legado de que o Brasil precisa usar cada vez mais a tecnologia dentro de sala de aula, e isso deve fazer parte da formação dos professores. Já existia esse alerta, que fica mais forte diante desse cenário”. André Martins defende prudência e uma reflexão mais complexa sobre o que isso representa e questiona: “É razoável colocarmos as crianças e adolescentes na frente de computadores por 3h30 ou mais quando as pesquisas recomendam um tempo bem menor? É razoável transformarmos os pais ou responsáveis em ‘professores-auxiliares’ para atuarem na formação escolar de seus filhos sem que tenham formação pedagógica? Quais as consequências para a formação escolar em médio e longo prazo?”.