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Programas de fertilização aumentam chances de gravidez após câncer

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Com o avanço dos tratamentos e a desmistificação do câncer como “sentença de morte”, muitas mulheres têm pensado na vida que podem gerar após a cura. Os diagnósticos precoces também levantam a preocupação com a qualidade de vida após a doença, e o sonho de engravidar pela primeira vez ou de ter mais filhos no futuro desponta como real possibilidade diante dos programas de fertilização. Segundo a médica ginecologista Fernanda Polisseni, especialista em reprodução humana, tem sido cada vez mais comum o congelamento de óvulos por pacientes diagnosticadas com câncer. Um dos motivos, conforme ela, é que o de mama tem acometido mulheres cada vez mais jovens, as quais não têm família constituída ou todos os filhos que gostariam. “A mulher vem adiando a maternidade nas últimas duas, três décadas, em função de outras prioridades.”

Diretora em Juiz de Fora da clínica Nidus – Medicina Reprodutiva, Fernanda explica que alguns tratamentos de câncer comprometem a capacidade reprodutiva, tanto do homem quanto da mulher. “Alguns quimioterápicos são tóxicos e fazem com que os testículos e os ovários parem de funcionar ou tenham sua capacidade reduzida.” Ela acrescenta que, no caso feminino, ainda há a questão de a reserva de óvulos ir diminuindo ao longo da vida, até a chegada da menopausa. “A quimioterapia pode levar ao consumo mais acelerado desse estoque, dependendo do medicamento, da dose usada, do número de ciclos e da idade da mulher. O comprometimento do ovário pode ser transitório ou definitivo, o estoque pode ser parcialmente ou completamente consumido.”

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A especialista em oncofertilidade destaca que a radioterapia também pode comprometer o funcionamento dos ovários, assim como dos testículos. “Uma possibilidade é a preservação da fertilidade antes do tratamento do câncer. No caso da mulher, por meio do congelamento dos óvulos ou dos embriões – que é o óvulo já fecundado pelo sêmen do homem.” A médica pontua que a paciente interessada em engravidar posteriormente deve tomar a decisão sobre o congelamento após o diagnóstico e a definição do tratamento (radio ou quimioterapia). “Se os remédios a serem usados forem tóxicos para o ovário, deve-se congelar antes.” Os resultados, lembra ela, são melhores antes dos 40 anos.

Luana Pontes foi diagnosticada com câncer aos 37 anos e congelou óvulos (Foto: Arquivo pessoal)

‘O congelamento de óvulos manteve meu sonho vivo’

A médica Luana Aparecida Silva Fontes, 40, optou pelo congelamento de seus óvulos ao ser diagnosticada com câncer em 2020, aos 37 anos. “Em fevereiro, durante o banho, eu senti um nódulo na minha mama. E eu não tinha nenhum fator de risco.” Com filho de 1 ano na época, a anestesiologista começou a investigar no dia seguinte. “Os resultados dos exames foram suspeitos, até o diagnóstico em 4 de março. Parece que abre o chão, você fica sem direção e não sabe o que fazer da vida. Mas respirei fundo: tenho que pensar e colocar a vida em ordem, vamos por etapas.”

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Tanto seu mastologista quanto sua oncologista a aconselharam a congelar os óvulos, diante da intenção de um segundo filho. “A própria quimioterapia pode danificar os ovários, então após pode existir dificuldade para engravidar. Pelo tipo de câncer que eu tive, também teria que tomar uma medicação por cinco anos e não poderia engravidar (nesse período), só quando estivesse com 42, 43 anos. Por isso me orientaram sobre essa possibilidade.” O tempo necessário para o procedimento – em torno de 15 a 20 dias – não influenciaria no prognóstico da doença, conforme os médicos. O apoio familiar também foi fundamental.

Enquanto dava andamento nos exames pré-operatórios, preparando-se para a cirurgia de mama, Luana se consultou com a médica Fernanda Polisseni e decidiu pelo congelamento dos óvulos. “São mais ou menos 15 dias de preparo. Tomei todas as medicações e fiz ultrassom seriado, até a coleta dos óvulos.” No meio desse turbilhão, a anestesiologista ainda teve que lidar com o começo da pandemia da Covid-19. “Não foi tão simples, porque nesse período suspenderam o congelamento de óvulos. Mas o meu era de urgência, eu não podia esperar, tinha que começar a quimioterapia. No final, deu tudo certo.”

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Planos para o futuro

Para Luana, que está em total remissão da doença, o congelamento de óvulos significou manter seu sonho vivo. “Eu queria ter outro filho, e o congelamento de óvulos me permitiu continuar sonhando em ser mãe. Foi muito importante para mim. Hoje, quando penso que em qualquer momento que eu decidir engravidar posso tentar, fico bem tranquila.”

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A anestesiologista pondera não ser impossível engravidar naturalmente após o tratamento contra o câncer. “Mas acho o congelamento uma estratégia importante, embora o custo seja alto.” Ela reforça que, com a evolução da medicina, o câncer deixou de ser um diagnóstico de morte. “Mesmo passando por um momento difícil como esse, as pessoas podem continuar sonhando e tendo planos para o futuro, como a maternidade.”

Procedimento é oferecido pelo SUS em alguns HUs

A médica Fernanda Polisseni explica que o procedimento para congelar óvulos começa com a estimulação dos ovários, com o uso de medicamentos (gonadotrofinas) no decorrer de 10 a 12 dias, para que vários óvulos sejam produzidos no mesmo ciclo menstrual. “Em um ciclo natural, a mulher produz um único óvulo, e outros tantos são perdidos. Essas medicações resgatam esse óvulos que iriam morrer, então vamos ter vários óvulos maduros em um único ciclo.” A partir daí, a mulher é acompanhada por ultrassom, para que os óvulos maduros sejam retirados no momento certo, por meio de punção com agulha por via vaginal guiada por ultrassom. “É um procedimento simples. Não tem corte, não tem cirurgia. A paciente não sente dor, e a sedação é superficial, como aquela feita na endoscopia.”

Conforme a ginecologista, os óvulos retirados são congelados e mantidos em botijões de nitrogênio líquido, a uma temperatura de 196 graus negativos. “Nessas condições, podem permanecer por tempo indeterminado, sem perda da qualidade ou envelhecimento. Após finalizado o tratamento do câncer, a mulher pode descongelar esse óvulos e os fertilizar in vitro no laboratório para obter embriões que podem ser colocados no útero dela para gerar.”

A especialista pontua que a preservação da fertilidade por meio do congelamento de óvulos cresceu mais nos últimos 10 anos, com a evolução das técnicas. De acordo com ela, embora o procedimento não seja coberto por planos de saúde, o método é oferecido pelo SUS em hospitais universitários (HUs) do país, sendo o mais próximo o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.

Fernanda Polisseni explica que a preservação da fertilidade por meio do congelamento de óvulos cresceu nos últimos 10 anos (Foto: Kempton Vianna/Divulgação)

Gravidez segura

Para quem despertou para a possibilidade, Fernanda orienta: “O mais importante é buscar informação com seu ginecologista ou mastologista sobre o tratamento que vai fazer e se esse traz risco para sua fertilidade.” Se for essa a situação, a paciente deve questionar se há tempo hábil para o congelamento dos óvulos antes da intervenção por quimio ou radioterapia. “O procedimento para estimular a produção de óvulos é seguro, não aumenta o risco do câncer e não atrapalha o tratamento. A gravidez depois da cura do câncer (inclusive de mama) também é segura. Estudos mostram que as mulheres que engravidaram tiveram até melhora na recidiva “, destaca a médica.

Falta de informação ou de “cabeça” para pensar na questão diante de um diagnóstico de câncer, entretanto, podem ser empecilhos para algumas pessoas. “É um momento de notícias ruins, de fragilidade, em que querem logo resolver o tratamento e a cura. Mas se não pensarem a longo prazo, podem estar perdendo a oportunidade de ter filhos no futuro e se frustrarem”, acredita a ginecologista. Ela acrescenta que ainda assim há outras formas de gerar um filho, como por meio de óvulos doados.

Após sucessivos diagnósticos de câncer, mulher comemora gravidez

V.C. tinha 20 anos quando descobriu um câncer de ovário em estágio avançado e acredita ter escapado por pouco. Vinte e um anos depois e após sucessivos diagnósticos da doença, seguidos de cirurgias e tratamentos, ela comemora sua primeira gravidez. Por meio de óvulos doados – fecundados com sêmen do marido – e útero cedente de um familiar, V.C. pôde vislumbrar um futuro a três. Ou a quatro, quem sabe.

“De 2001 para 2002, comecei a ter muita dor no estômago, cansaço e esgotamento. Achava que era por causa de trabalho. Estava muito pálida, minha barriga ficou grande, meu pai até me perguntou se eu estava grávida. Quando fui diagnosticada, não sabia o que iria acontecer. Só chorava, lembrando que a Carolina Dieckmann perdia os cabelos na novela ‘Laços de Família’. Eu não tinha noção da gravidade da minha doença”, contou a mulher, que preferiu manter sua identidade preservada.

O tratamento aconteceu no Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro. “O risco de morte era muito grande, e começaram as intervenções para eu não ir a óbito. Fiz laparotomia, tirei ovários, trompas e o líquido do abdômen.” A batalha começava ali. “Como havia os micronódulos na barriga, precisei fazer quimioterapia. Fiz seis ciclos, perdi cabelo e raspei a cabeça.”

Por orientação médica, em 2003 ela retirou o útero. “Nessa cirurgia viram um nódulo num fundo de saco posterior, entre a bexiga e o reto. Fiz mais seis ciclos de quimio e perdi de novo o cabelo. Depois fiquei bem por 10 anos.” Após essa década, entretanto, um novo exame de rotina revelou câncer em parte da bexiga e do intestino. “Eu não queria abrir a barriga. Na parte inferior, teve corte como de cesárea. Na superior, a cirurgia foi por vídeo.”

‘Deus me deu muita prova de que está comigo’

Naquela época, em 2013, V.C. ouviu do cirurgião que seria necessário retirar sua bexiga. “Quando ele abriu, falou que não tinha jeito. Eu chorava muito, porque não queria, estava começando a namorar meu marido. Mas Deus sempre trabalhou na minha vida e me deu muita prova de que está comigo o tempo inteiro. Quando o cirurgião saiu para conversar com outra médica (sobre a retirada da bexiga), faltou luz no Inca. Ela então o orientou a fechar a paciente.”

A oncologista optou por mais alguns ciclos de quimioterapia antes da cirurgia drástica. “Quando acordei, coloquei a mão na barriga para ver se eu estava com alguma bolsinha. Mas deu certo. O nódulo tinha calcificado, e a médica conseguiu retirar apenas uma parte da bexiga. Ela ainda contou que viu uma luz muito forte na minha cabeça quando estava operando. Eu pensei: Deus está do meu lado, querendo alguma coisa de mim.”

O casamento aconteceu em 2015 e, dois anos depois, apareceram tumores no reto e em outros lugares do abdômen. “Foi muito agressivo, tinha penetrado a flora intestinal. Fiz uma cirurgia muito complicada, de 7h até quase 22h. Tive um problema no coração, saí de lá com colostomia, dreno de tórax, de abdômen, sonda e oxigênio.” Sete dias depois, houve complicação: uma fístula no intestino que a levou a nova intervenção. “Minha barriga ficou toda costurada. Mas sempre pensei em um dia de cada vez.” A paciente precisou ficar com a bolsa de colostomia por dois anos e fez mais seis ciclos de quimio.

Detalhe do Botijão de nitrogênio utilizado no congelamento de óvulos a 196 graus negativos (Foto: Kempton Vianna/Divulgação)

Tratamento hormonal

A preocupação com um novo retorno da doença levou V.C. a pesquisar outras possibilidades de tratamento e, em 2017, ela recebeu recomendação médica para experimentar um tipo de bloqueador hormonal, que poderia ser eficiente no seu caso. Mesmo com o aparente sucesso, em 2020 foi detectado um nódulo na base da pleura, membrana que envolve o pulmão. “Para chegar ao local, tive que retirar duas costelas, e coloquei prótase. Minha recuperação foi boa e bola para frente, sempre tive pensamento positivo de que ia dar certo.”

A oncologista mudou a medicação e, em dezembro de 2021, quando tudo ia bem, a paciente tomou um susto. No entanto, a suspeita de tumor entre o útero e a vagina não era câncer e, sim, uma fibrose. Desde então, V.C só pensa na nova vida que está por vir. “Meu sonho sempre foi ser mãe, e do meu marido, ser pai. Falamos em adoção, mas ele é tão bom, o mundo precisa de pessoas como ele. Vi muitos homens abandonando suas mulheres (durante o câncer), e ele é uma bênção na minha vida.”

A possibilidade da fertilização in vitro com óvulos doados – de pessoa com suas características e mesmo tipo sanguíneo – e sêmen do marido pareceu perfeita para V.C. A primeira tentativa foi frustrada, mas o casal conseguiu um novo útero cedente para realizar seu sonho. “Quando o resultado deu positivo, foi uma alegria tão grande.” Ciente dos riscos e das etapas pela frente, V.C. compartilha sua superação aos 41 anos. “Quero muito ajudar outras pessoas, porque sei que existem muitos preconceitos com relação a isso.” A pacientes que enfrentam o câncer, ela recomenda “nunca desistir de lutar, por mais difícil que seja a batalha”: “Temos que acreditar em dias melhores e viver um dia de cada vez.”

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