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Suicídios aumentam mais de 50% em JF com pandemia

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Com o lema é “A vida é a melhor escolha!”, a campanha Setembro Amarelo 2022, voltada para a prevenção ao suicídio, busca quebrar os estigmas que permeiam o assunto para que a ajuda chegue a quem precisa. O medo de falar sobre as pessoas que pretendem ou chegaram a tirar a própria vida só contribui para escamotear uma realidade que assola famílias todos os dias. Só em Juiz de Fora, pelo menos 47 pessoas se suicidaram este ano e mais de 150 tentaram o autoextermínio. O levantamento foi realizado pelo jornalista Fernando Gonçalves, com base em dados das polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros, Samu, hospitais e cemitérios. A estatística ainda revela possíveis reflexos da pandemia na saúde mental da população: em 2021, 63 pessoas cometeram suicídio, enquanto entre 2017 e 2020 o total anual variou entre 30 e 40. Ou seja, houve aumento de 57,5% nas ocorrências do ano passado, e a incidência desse tipo de morte em 2022 já superou os períodos anteriores.

A última pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, mostrou que mais de 700 mil suicídios foram praticados em todo o mundo naquele ano. Como há muita subnotificação, a estimativa é de mais de um milhão de casos. No Brasil, onde os registros anuais giram em torno de 14 mil, a média é de 38 autoextermínios por dia. Os dados são da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que, há dez anos, colocou a campanha internacional Setembro Amarelo no calendário brasileiro. “Sabe-se que praticamente 100% de todos os casos de suicídio estavam relacionados às doenças mentais, principalmente não diagnosticadas ou tratadas incorretamente. Dessa forma, a maioria dos casos poderia ter sido evitada se esses pacientes tivessem acesso ao tratamento psiquiátrico e informações de qualidade”, informa a ABP.

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A campanha enfatiza que todos devem atuar ativamente na conscientização da importância que a vida tem e ajudar na prevenção do suicídio, pois o tema ainda é visto como tabu. “É importante falar sobre o assunto para que as pessoas que estejam passando por momentos difíceis e de crise busquem ajuda e entendam que a vida sempre vai ser a melhor escolha”, destaca a associação. “Quando uma pessoa decide terminar com a sua vida, os seus pensamentos, sentimentos e ações apresentam-se muito restritivos, ou seja, ela pensa constantemente sobre o suicídio e é incapaz de perceber outras maneiras de enfrentar ou de sair do problema. Essas pessoas pensam rigidamente pela distorção que o sofrimento emocional impõe.”

‘Ninguém passou ileso pela pandemia’

Em consonância com a campanha Setembro Amarelo, o psiquiatra Guilherme Amaral observa ser necessária a psicoeducação para colocar fim à psicofobia. “Precisamos acabar com esse preconceito em procurar ajuda. Muitos quadros de suicídio podem ser evitados com abordagens. A maior parte desses pacientes tem transtorno de humor, que evolui para depressão, transtorno bipolar.” Nesse contexto, o vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Juiz de Fora reforça que familiares e amigos devem ficar atentos a mudanças de comportamento de pessoas próximas, que podem indicar questões relacionadas à saúde mental, como isolamento, deixar de frequentar lugares que antes gostava, não responder ao telefone.

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Segundo o médico, a psiquiatria deu um salto nos últimos 20 anos, com o auxílio da tecnologia, quebrando tabus. “Como muita coisa não se conseguia provar, caía no imaginário, criando mitos e preconceitos. Temos que lembrar que o cérebro é um órgão e, se não cuidar bem dele, pode ter problema, até porque os neurônios não têm essa capacidade de reprodução.” Ele acrescenta que os transtornos mentais podem estar ligados a disfunções orgânicas, inclusive hereditárias, e que o tratamento pode aliviar os sintomas e identificar também as causas sociais que os potencializam. “Há a predisposição orgânica e os gatilhos, como o estresse.”

Entre os muitos mitos que rodeiam a saúde mental, o psiquiatra cita a crença de que “quem tenta muito praticar suicídio não o faz, está querendo chamar atenção”. Na percepção do especialista, quem tenta muito, na verdade, tem mais possibilidade de conseguir tirar a própria vida. “A pessoa pode estar pedindo ajuda, e se a ajuda não vier? Se o método anterior não funcionou, pode querer usar um mais agressivo.” Guilherme Amaral lembra que o transtorno mental não é uma escolha. “Se o cérebro não funciona adequadamente, é muito mais difícil para a pessoa conseguir procurar ajuda.”

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Sobre os últimos anos, ele assevera: “Ninguém passou ileso pela pandemia, em maior ou menor grau”. O estresse diante do desconhecido, a perda de familiares, o desemprego, o próprio isolamento social, a contabilização dos mortos, a imersão no mundo virtual, tudo contribuiu para desestabilizar a saúde da mente. “Percebemos um agravamento de todos os transtornos mentais. A vida mudou muito e, agora, a população está se readaptando. Tem gente ainda com medo de sair de casa. É um novo modelo de vida, uma nova realidade.”

Estresse pós-traumático

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O médico complementa que algumas pessoas desenvolveram estresse pós-traumático como reflexo da pandemia e que pode demorar anos até todos se recuperarem. “O Setembro Amarelo tem a função de desmistificar a psiquiatria para a população procurar ajuda. Quem está sofrendo e quem está vendo o outro sofrer.” O vice-presidente da ABP pondera que o importante é buscar o apoio profissional que esteja ao alcance, embora o ideal seja o apoio médico e psicoterápico. “Uma coisa não anula a outra. Se possível, deve procurar um especialista, mas quem tem mais dificuldade, por exemplo, porque mora em Zona Rural, pode procurar um clínico-geral, que vai saber proporcionar o tratamento.” O fundamental, ele diz, é fazer uma abordagem acolhedora de quem precisa. “Muitas pessoas ainda têm essa fobia, essa não aceitação.”

‘A divulgação do tema ajuda pessoas como eu’

Fernando Gonçalves encontrou na atividade física um incentivo extra para viver feliz (Foto: Arquivo pessoal)

O jornalista Fernando Gonçalves, de 33 anos, sabe como é importanteter ajuda especializada para seguir adiante. Em entrevista à Tribuna, ele revela já ter tentado tirar a própria vida. “Em 2018, sofri uma forte queda depressiva e ansiosa. Fiquei alguns meses tentando digerir o problema sem precisar envolver-me com psiquiatra e psicólogo. O resultado foi que, voltando do trabalho, parei meu carro no Centro e procurei um lugar para consumar o ato. Na minha cabeça, eu iria pular na frente de um veículo, não para perder minha vida, mas para me livrar da dor que eu estava sentindo naquele momento.”

Com as crises de ansiedade e depressão, iniciadas no trabalho, Fernando, que mede 1,84m, chegou a pesar 53kg. “Eu também já tive parentes que tentaram suicídio e pude compreender que eles queriam o mesmo: livrar-se daquela dor.” O levantamento dos casos de autoextermínio em Juiz de Fora começou por acaso, para uma reportagem. Mas o jornalista continuou reunindo os dados, para que os mesmos não se dispersassem, a fim de mostrar a necessidade de se falar, sim, sobre suicídio. “Tornou-se extremamente necessário para ajudarmos outras pessoas. A divulgação do tema auxilia pessoas como eu, que não sabem a quem recorrer, a procurar ajuda.”

Sobre sua própria experiência, Fernando desabafa: “A depressão levou minha vida: amigos se despediram, a igreja disse que eu não servia mais, no trabalho eu já não prestava… tive crises de pânico e fiquei um tempo só em casa. Foi nesse ‘boom’ de situações que comecei o tratamento com psicólogo e psiquiatra e vi a importância de ser assistido por profissionais que podem ajudar a nos livrar daquilo que nos incomoda. Até hoje, estou ‘condenado’ a tomar remédios com a condição de ser uma pessoa com atividades normais, como qualquer um.”

Romantização

O jornalista alerta que a depressão, principalmente entre os jovens, foi muito romantizada nas redes sociais. “Depressão é uma doença, e mata. Quem não tem também precisa saber o que é para ajudar alguém em situação extrema. Na pior parte da minha doença eu ouvi: ‘você é um menino que toca na igreja, não pode ficar assim’ ou ‘vou te levar a um hospital para você ver o que é doença, pra você valorizar a vida’. Exemplos como esses só me afastaram das pessoas e me deixaram pior.”

Com orgulho, Fernando conta que, a partir do seu conhecimento sobre o assunto, acredita ter salvado três vidas do suicídio. “Eu entendia o que as pessoas sentiam. Imagina, divulgando o tema, quantas pessoas podemos salvar? Falar sobre isso apenas em setembro é muito pouco. Precisamos de atenção o ano todo.” Na visão dele, a pandemia piorou muito a situação. “Acredito que, cada vez mais, as pessoas vão conhecer a depressão. Se souberem onde recorrer e se tiverem amigos e parentes para ajudar, podem evitar a chegar ao extremo, que é o suicídio.”

Além de contar com o apoio de profissionais, o jornalista viu na atividade física um incentivo a mais para viver. A perda recente de seu cachorro, entretanto, o levou a um novo processo depressivo, que ele busca superar, ao mesmo tempo em que se preocupa com quem está ao seu redor. “Não quero que ninguém sinta o vazio da alma que eu senti.”

CVV oferece ajuda pelo número 188

Para quem deseja conversar sobre o que está sentindo de forma mais reservada, Juiz de Fora conta desde janeiro com um posto do Centro de Valorização da Vida (CVV) na Câmara Municipal. A coordenadora local, Valquíria Matos, explica que, por enquanto, não há atendimento presencial, mas qualquer pessoa interessada pode receber ajuda pelo número 188, que atende chamadas de todo o país, 24 horas por dia. Em média, são cerca de 10 mil ligações diárias, nos 120 postos espalhados pelo território nacional.

A mantenedora do posto é a instituição filantrópica Núcleo de Apoio à Vida de Juiz de Fora (Navijuf). “Utilizamos a sala na Câmara para atendimento por telefone por parte de alguns voluntários e para eventuais reuniões. A instituição é mantida com as contribuições dos próprios voluntários e por doações de pessoas e segmentos da sociedade. Tem personalidade jurídica e não está vinculada com qualquer religião, governo ou partido político”, esclarece Valquíria.

Segundo ela, todos os atendimentos, que também acontecem por chat ou e-mail, são individuais e oferecem acolhimento, sem qualquer tipo de julgamento e com garantia total de sigilo. Sobre a importância do Setembro Amarelo para conscientizar a sociedade deste problema de saúde pública e da necessidade de políticas de prevenção, ela avalia: “Precisamos falar sobre o assunto, mas com responsabilidade, informação, empatia e acolhimento, sem aumentar a dor de quem já está em sofrimento. A campanha possibilita quebrar esse tabu de falar sobre suicídio e sua prevenção e, à medida em que acontece, as pessoas são estimuladas a conversar sobre suas emoções durante o ano todo e a oferecer ajuda a quem precisa.”

Segundo Valquíria, o CVV conta com 4.200 voluntários em todo o Brasil e, com o objetivo de aumentar esse número, lançou a “Fila Zero 2022”, com sensibilização interna entre os voluntários, para que possam oferecer horas a mais de atendimento a quem procura ser acolhido. “O Setembro Amarelo aumenta a demanda de ligações e a necessidade de um maior número de voluntários disponíveis, principalmente nos horários de maior fila de espera para atendimento remoto.”

A coordenadora do CVV acrescenta que a pandemia trouxe como consequência problemas emocionais para milhares de pessoas, alavancando também o volume de telefonemas. “A dor do luto, da perda, da saudade, e o período curto em que todas essas emoções surgiram causaram problemas que afetam a saúde mental.” Com toda sua vivência sobre a questão, ela orienta: “Se alguém está passando por uma dor, o que esta pessoa está sentindo só aumenta, não diminui. Nesse caso, procure ajuda médica e psicológica, mas também falar, conversar sobre o que está sentindo com alguém de confiança ou pessoa próxima, ligar para o CVV ou para outras instituições que fazem trabalhos semelhantes só trará melhoria e ajudará a passar por esses momentos tão difíceis e dolorosos.”

Outros grupos de apoio

Matéria publicada pela Tribuna no dia 18 mostrou que no município há vários serviços gratuitos voltados para a saúde mental da população, oferecidos pela Universidade Federal de Juiz de Fora e pela Prefeitura (PJF). A universidade orienta que os interessados façam contato direto no Centro de Psicologia Aplicada (ICH-UFJF) para conseguir apoio psicológico e entrar no projeto mais adequado. Os atendimentos psicoterapêuticos têm inscrições abertas duas vezes ao ano por meio de formulário on-line.

Segundo a PJF, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) começa na Atenção Básica, quando alguém busca ajuda em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). A partir daí, é feito o encaminhamento para um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). A Raps possui cerca de 8 mil usuários cadastrados e tem média de 1.200 a 1.500 atendimentos por mês.

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