Era pouco depois das 18h e Cristianne de Medeiros Nogueira iniciava o preparo do jantar ao lado do marido. Naquele dia, e nos próximos, porém, a mesa teria dois pratos a menos. Os dois filhos do casal de médicos não estão em casa. “Como profissionais da área de saúde, optamos por nos isolar deles. Nossos filhos estão com minha mãe e meus avós numa cidade do interior. Isso é muito difícil”, conta ela, médica nefrologista na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora e no Hospital Regional Dr. João Penido, centro de referência para os casos da Covid-19 na região. “Minha menininha mais nova tem 1 ano e 3 meses. Meu menino vai fazer 7 anos mês que vem. É muito difícil ficar longe deles. Minha mãe é idosa, meus avós. Colocamos na balança o risco e a chance de transmitirmos alguma coisa para eles, porque estamos na linha de frente desse combate, então, optamos por isso (o isolamento)”, explica. A ajudante, já idosa, também foi dispensada. “Precisávamos protegê-la e deixá-la em isolamento em casa. Com isso, assumimos, também, a rotina da casa”, narra a médica, em conversa por WhatsApp pouco antes das 23h, quando finalmente concluiu a jornada do dia.
O cotidiano atribulado, a rotina nova forjada após a chegada do coronavírus no Brasil, ganha contornos ainda mais dramáticos quando observados os aspectos como a vida social e o caráter emocional dos profissionais de saúde de diferentes setores e espaços, dos hospitais particulares aos públicos, passando pelas unidades básicas de saúde. “O que pesa muito é a saudade”, garante Cristianne Nogueira.
Coordenadora do Núcleo de Segurança do Paciente da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, Michelle Aliani concorda. “Pensando que nós somos um grupo de risco para contaminar, estou afastada dos meus pais e do meu filho há semanas. Não sei quando vou vê-los. Conversamos somente pelo celular nas chamadas de vídeo. É horrível, mas é o correto a ser feito nesse momento”, diz a enfermeira.
Para o médico infectologista Guilherme Côrtes Fernandes, o isolamento da família é uma tendência entre os profissionais de saúde. O gesto já passou pela cabeça do médico infectologista do Hospital Universitário Rodrigo Daniel de Souza, mas não foi levado a cabo. “O distanciamento é impossível. Não consigo ficar longe da minha filha, e ela também sentiria muito a minha falta. Não dá para tomar essa atitude agora. Mas se eu tivesse uma pessoa do meu convívio com um fator de risco, eu teria que largar tudo e ir para um hotel para evitar expô-la”, pontua ele, alvo constante das preocupações da esposa. “Saio, vou trabalhar, e ela fica com medo do que posso trazer para casa ou se posso adoecer e deixá-las sozinhas. Realmente isso traz um transtorno grande e tem um peso na parte emocional.”
Na última terça (24), a psicóloga Adriana Gomes, coordenadora do Setor Vida Saudável da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, fez aniversário. Não recebeu abraços nem beijos. Amigos e familiares se encontraram numa videoconferência. E brindaram. “Foi um dos aniversários mais lindos que já tive. Extremamente afetivo. Foi muito significativo. O que tenho dito sempre: longe dos olhos e perto do coração”, emociona-se ela, que tem orientado colegas e conhecidos de que as dificuldades fortalecem e conferem sentido à existência. “Nos mantermos afastados fisicamente não significa que estejamos afastados emocionalmente. Aprender a expressar nossos sentimentos, elaborar nossas emoções de diferentes formas traz um grande aprendizado e um grande ganho a todos nós”, indica, e acrescenta: “É preciso percebermos que ninguém é vítima dessa situação. Todos nós somos cidadãos, e temos uma responsabilidade social em nos proteger e proteger nosso semelhante com nossos comportamentos.”
‘Foi como se tivesse dado a largada’
Guilherme Côrtes Fernandes é o infectologista que integrava a equipe de atendimento do primeiro paciente confirmado com Covid-19 em Juiz de Fora, cuja alta foi dada na última segunda (23). Médico do Hospital da Unimed, ele teve a rotina imediatamente alterada, tanto pelo aumento da demanda assistencial, quanto pela urgência no contato com lideranças comunitárias e gestores, para ajudar a organizar estratégias de enfrentamento a epidemia. A sensação, conta, era de que o que lia em artigos e assistia na mídia tornava-se realidade palpável. “Foi como se tivesse dado a largada e antes estávamos apenas nos preparativos, com aquela sensação de que naquela hora começava a luta corpo a corpo”, recorda-se o médico, rapidamente conhecido por um público amplo na cidade ao gravar vídeos com orientações sobre a prevenção à doença.
Desde que começou a aumentar o número de casos na China, os comentários com colegas de hospital foram ganhando contornos crescentemente preocupados. “Logo que foi notificado o primeiro caso no país, a gente já se atentou para o fato de que o João Penido seria o hospital de referência. Sempre que há alguma epidemia ele é o hospital que dá o suporte para a população. Foi assim na febre amarela e até no caso de ebola na África. Recebemos com receio, com preocupações, mas sabendo que é uma rotina do hospital estar preparado para as doenças infecciosas”, relata a nefrologista Cristianne Nogueira, que optou por paralisar o consultório e orientar pacientes por ligações telefônicas ou aplicativos de conversa.
Enfermeira residente em saúde da família na Unidade Básica de Saúde do Bairro Alto Grajaú, Mariana Galvão viu às ações de prevenção, promoção e acompanhamento acrescerem estratégias de enfrentamento à Covid-19. Viu, também, a urgente necessidade de investimento num sistema criado junto com o processo de redemocratização do país. “Defendo o projeto do SUS. O projeto de Brasil que idealizamos na transição democrática desse país é o projeto que coloca a saúde como direito, uma democracia precisa garantir saúde ampliada para seus cidadãos. A vida humana tem valor, mas não pode ter preço. Na nossa sociedade, insistem em colocar preço em tudo, tornando tudo um mercado rentável para pouquíssimos”, critica ela, bacharel e mestre em enfermagem pela UFJF.
Setor público
Considerado protagonista no enfrentamento à pandemia no Brasil, o setor público se prepara para cenários mais críticos, ainda que exigindo muita luta dos profissionais que dele fazem parte. “Dentro do possível, tentamos nos apoiar e estamos lutando para ter o material certo, os equipamentos de proteção individual certo, não apenas para nós (médicos), mas para toda a equipe, de técnicos e fisioterapeutas, com fé de que vai surgir uma medicação que possa nos ajudar nesse combate. Lá (no João Penido) já estamos tentando usar a hidroxicloroquina para tratar alguns pacientes, seguindo os protocolos que estão sendo feitos agora. Estamos na luta”, garante a médica nefrologista.
No Hospital Universitário da UFJF, conforme o médico infectologista Rodrigo Daniel de Souza, a situação é tranquila em relação aos equipamentos de proteção individual, capacitação das equipes e estrutura. “De qualquer maneira, estamos muito preocupados com o que está por vir. Estamos fazendo reuniões diárias, a maior parte delas utilizando aplicativos para videoconferências. Tomamos decisões importantes e conseguimos alguns apoios e, com isso, acho que a gente tende a oferecer uma assistência aos pacientes numa qualidade superior”, avalia, apontando para uma agigantada equipe. “Trabalho com segurança do paciente, uma parte da equipe com isso. Outra parte com controle de infecção. Outra parte com vigilância epidemiológica e, ainda outra, com qualidade. Estamos muito envolvidos. Até hoje não consegui fazer com que tivessem uma carga horária menor. Estão trabalhando no limite e todos tentando ajudar. É uma equipe maravilhosa, que se preocupa não só com eles mesmos, mas com toda a população. É um tipo de atenção à saúde que as pessoas não veem. Tem vários enfermeiros na equipe, e todos estão muito dedicados em fazer o melhor para que essa epidemia tenha o menor impacto possível.”
‘Provavelmente serei um dos pacientes’
O medo, para Rodrigo Daniel de Souza, não faz parte. “Tenho tranquilidade de saber que fico muito exposto, provavelmente serei um dos pacientes infectados no final da epidemia, justamente por atender no Hospital de Pronto-Socorro, além do Hospital Universitário. Tenho um risco maior do que a população geral de adquirir o vírus. Espero não ter complicações. É inevitável. Faz parte da profissão e do jogo”, diz o médico infectologista, reconhecendo que enfrentar é verbo implícito no juramento profissional. “Agora é que vemos os profissionais de verdade, aqueles que estão enfrentando a epidemia e não se escondendo”, acrescenta.
Em sua rotina de trabalho, coordenando os serviços de gestão de risco, a enfermeira Michelle Aliani trabalha não apenas intensificando treinamentos como também buscando tranquilizar os profissionais à sua volta. “As pessoas estão extremamente preocupadas”, admite. “Principalmente por ser algo ainda desconhecido, ficam com medo. Em alguns momentos, o pânico existe. É uma situação que nunca vivenciamos”, explica. “Não é fácil manter o distanciamento emocional”, concorda a médica nefrologista Cristianne Nogueira. “A gente também fica ansioso e preocupado. Mas entendemos que escolhemos e acolhemos essa profissão, então, temos que ir para a luta. Não é fácil. Tentamos não ter medo, mas como qualquer ser humano, temos as preocupações. Pensamos que optamos por isso e precisamos pensar pelo outro.”
Quando os trabalhos foram paralisados na equipe multiprofissional – entre médicos, enfermeiras, nutricionistas, fonoaudiólogas, psicólogas, fisioterapeutas, assistente social, auxiliares administrativos -, coordenada pela psicóloga Adriana Gomes, mantiveram-se, apenas, os atendimentos aos casos mais graves. As visitas domiciliares, cerca de 80 diariamente, além de 20 consultas ambulatoriais, foram suspensas e parte da equipe foi afastada. Com os profissionais que continuaram na linha de frente, Adriana fez uma terapia de grupo, “para que todos pudessem expressar como estavam se sentindo naquele momento”. “Como equipe multidisciplinar, nosso papel é cuidar dos outros, mas, precisamos também cuidar de nós, para que possamos cuidar dos nossos, também. Existem mães e pais na equipe, filhas, netas, irmãs, enfim, todos temos amores que desejamos cuidar e proteger”, conta ela, certa da necessidade de cuidado emocional com os profissionais de saúde. Atitude semelhante tomou a UFJF ao implementar atendimento psicológico para os profissionais do Hospital Universitário, com plantão em espaço online (pelo e-mail plantaopsihuufjf@gmail.com).
Angústia
“Compartilhamos de toda a ansiedade que a população em geral está vivenciando, de toda a angústia que tem sido gerada. Tem um impacto emocional dessa angústia comum, o peso do distanciamento de nossos familiares e uma ansiedade como profissional de saúde de enfrentar situações que, quem já viu, nunca gostaríamos de ver novamente, e quem nunca viu deveria passar a vida sem ver. Isso traz um peso. A sensação é como se vivêssemos numa guerra, irmãos de trincheiras”, comenta o infectologista Guilherme Côrtes Fernandes. A essas angústias, no entanto, somam-se muitas outras. São muitos os relatos dando conta dos preconceitos que profissionais de saúde têm enfrentado em ambientes e transporte públicos. Também desgastante é o esforço que empreendem em desmentir, rotineiramente, notícias falsas e boatos que circulam em redes sociais.
“Não somos uma cambada de mercenários”
As palmas oferecidas em janelas e varandas do Brasil e do mundo afora, sempre às 20h30, emocionam a nefrologista Cristianne Nogueira. Também emocionam as enfermeiras Michelle Aliani e Mariana Galvão, a psicóloga Adriana Gomes e os médicos Guilherme Côrtes Fernandes e Rodrigo Daniel Souza. Emocionam quem atende e quem é atendido. Emocionam porque sugerem a rede que é o serviço de saúde. “Estamos ali no dia a dia, lidando com os casos mais graves, e esse é um apoio que a população não sabe o quanto nos emociona e o quanto faz bem para nós. Cada um se apoiando é muito legal”, afirma. Segundo a enfermeira Mariana Galvão, o movimento pode ir além.
“Ele tem sido para trabalhadores de saúde e são, pelo menos, 14 as profissões. De todas as formas acho positivo quando a coletividade consegue se organizar em prol de algo. Isso me lembra da nossa humanidade. Quando ouvi sobre esse movimento, fiquei pensando em como gostaria que fosse em prol do Sistema Único de Saúde, os profissionais estão fazendo um trabalho que é de se admirar sim, mas ninguém aqui é herói ou heroína, somos profissionais, nós precisamos de condições dignas de trabalho”, reivindica ela, que se isolou da companheira, de familiares e amigos por prevenção e aderiu à terapia remota e a uma limitação de acesso às redes sociais em prol de seu equilíbrio emocional.
“Falando pela enfermagem, essa é a segunda maior categoria de trabalhadoras desse país. Não estamos acostumadas com o status social, não é uma profissão com piso salarial regulamentado, não temos regulamentação da carga horária e muitos brasileiros nem sabem que existem diferentes profissionais dentro da categoria da enfermagem. Nós somos o maior quantitativo de profissionais na linha de frente dos cuidados, a maioria dessas trabalhadoras são mulheres e nosso maior empregador é o SUS”, expõe Mariana. Rodrigo Daniel de Souza faz coro à urgência por um reconhecimento efetivo. “Não somos uma cambada de mercenários, como muitos taxam”, afirma o médico. “Vamos mostrar que o servidor público – boa parte dos pacientes vai ser atendida pelo sistema público – não é sanguessuga, não é parasita. Não adianta um gestor reclamar do servidor público se ele não coloca para trabalhar. Existem maneiras gerenciais de cobrar produção, trabalho. Não adianta reclamar que o outro não faz se você também não faz sua parte. Esse é um momento de valorização. Em outros locais os profissionais recebem até adicionais nesse período, mas essa política no Brasil acho pouco provável. Não se tem essa consciência. As pessoas que estão na ativa deveriam ter algum reconhecimento, mas duvido que aja.”