No último dia 12, Lucas Ferreira, de 21 anos, acordou para trabalhar na certeza de que seu dia seria igual aos demais. Mas não, um grupo de sete rapazes, munidos com bastão de madeira e usando touca e capuz, interceptou o seu caminho. Um deles, com um artefato na mão semelhante a um coquetel molotov, arremessou o explosivo contra o rapaz. Naquele momento, Lucas, que é negro e gay, ouviu das bocas dos agressores: “Não queremos viado andando na nossa área.” Em razão do estouro, ele sofreu queimaduras de segundo grau na cabeça, face, tórax e braço. Segundo o rapaz, se não fosse a ajuda de um taxista que passava pelo local, ele poderia ter sido morto. O caso aconteceu na Avenida Sete, no Bairro Costa Carvalho, Zona Sudeste, e registrado pela Polícia Militar cinco dias depois, quando o jovem teve forças para procurar as autoridades para denunciar a violência. No boletim de ocorrência, a causa presumida para o ataque, conforme a PM, foi a homofobia.
Na segunda-feira, Lucas prestou depoimento ao delegado da 6ª Delegacia de Polícia Civil, Vitor Fiuza, que abriu inquérito para apurar o crime e identificar os agressores. Ontem a assessoria da Polícia Civil afirmou que o caso foi encaminhado para a Delegacia Especializada em Homicídios para dar continuidade às investigações, já que a ocorrência foi considerada tentativa de homicídio. A atitude de levar a violência a público por parte de Lucas é aclamada pela militância LGBTI de Juiz de Fora, uma vez que tende a tirar do armário outros casos, contribuindo para que providências sejam adotados e que esse tipo de agressão não fique impune. O Movimento Gay de Minas Gerais (MGM) já registrou em 2017 oito casos de homofobia.
Lucas, depois da agressão sofrida, não quis publicizar os fatos. Trabalhando como cuidador de idosos, tinha medo de perder o emprego. Todavia, todo o cuidado que teve para não deixar vir à tona o crime não foi bastante para mantê-lo no local de trabalho. Como teve que se afastar alguns dias para cuidar da sua saúde, o jovem foi demitido na última segunda-feira e, por isso, achou que não tinha mais motivos para guardar os fatos. “Cercaram-me, e fiquei sem reação. Disseram que não queriam viado naquela área. Fui cercado e não consegui falar nada. Só ouvia: viado, viado, viado, quando tamparam o artefato contra mim. Era uma rua que costumava transitar, e foi tudo muito rápido. Se tivessem com uma arma de fogo, seria muito pior, e acho que nem estaria vivo”, desabafa o jovem.
Ele conta que a violência só não foi extrema, porque um taxista passou pelo local, levando os agressores a fugirem. “O motorista do táxi me levou para casa e lá fiquei até amanhecer, pois não estava enxergando nada, quando fui até a Regional Leste. “Não tive sequelas na minha visão, mas não conseguia dobrar o braço devido à queimadura. Agora, já consigo fazer isso. Não imaginava que isso aconteceria aqui em Juiz de Fora e, infelizmente, aconteceu comigo. Falta de respeito comigo e com toda a sociedade, pois meus amigos estão revoltados. Não me deixam mais sair para rua à noite. Estou com medo de caminhar pela Avenida Sete. Também considero que o fato de ser negro tenha sido outro motivo para a agressão que eu vivi.”
Comissão da OAB quer identificação de agressores pela polícia
Assim que teve conhecimento dos fatos, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Juiz de Fora procurou a vítima para lhe oferecer apoio jurídico e encontrar um novo trabalho para ela. Segundo a presidente da Comissão, Cristina Guerra, Lucas deixou sua família muito cedo e não conta com a ajuda dos pais, situação que é confirmada pelo cuidador de idosos. “A família não o aceita porque ele é gay. Ele conta com o companheiro que mora com ele e, por isso, decidimos ajudá-lo também. Acionamos a Polícia Civil a fim de que esses agressores sejam identificados e presos. Lucas teve sorte porque um motorista de táxi passou e fez os agressores fugirem. Os próprios taxistas estão nos ajudando a procurar esse grupo de agressores”, ressaltou Cristina, que acrescenta: “É um caso escancarado de homofobia. Não podemos deixar que esse tipo de violência migre para Juiz de Fora. É um grupo homofóbico, que pode agir com intolerância contra outros segmentos, como negros e mulheres. Juiz de Fora não pode compactuar com essa barbárie”, enfatiza. Segundo ela, no dia em que foi até o local do crime, colheu depoimentos na área e soube que há outro rapaz gay que mora naquela região que está em pânico e se recusa a sair de casa sozinho, só saindo acompanhado pela mãe. “Isso não pode virar moda em Juiz de Fora. Temos que lutar contra esse tipo de preconceito. A gente espera que, com a divulgação, outros casos possam vir à tona, e talvez ajude a encontrar os agressores”, defende Cristina.
Para MGM, violência que era invisível agora tem sido denunciada
A violência contra Lucas foi parar no Facebook depois que um amigo dele postou a história e fotografias do jovem após a agressão. Imediatamente, o caso foi compartilhado dezenas de vezes e diversos pessoas postaram mensagens contra a homofobia, comparando os sete agressores com a forma negativa de atuação dos skinheads. Para o diretor do Movimento Gay de Minas (MGM), Marco Trajano, a denúncia do rapaz é fundamental para dar visibilidade à questão da homofobia. “Se não denunciada, essa violência fica encoberta, como uma violência urbana, cotidiana normal, que também é lamentável, mas que, no nosso caso, tem um rigor maior. Além disso, tem o agravante racial. Acho que a homofobia tem saído do armário, pois sempre existiu, mas não conseguíamos fazer esse tipo de diagnóstico, era uma violência invisível. Agora, com essa repercussão, está ficando mais às claras. Começamos a saber disso com mais frequência e nomeá-la, porque antes não era”, avalia Trajano, ressaltando que Lucas tem a sua disposição a estrutura do MGM no que diz respeito a apoio jurídico e psicológico. “Estamos há 20 anos trabalhando com denúncia, e parece que a sociedade LGBT passa agora a dar importância ao ativismo político e a se considerar merecedora de direitos”, conclui.
Integrante do grupo Visitrans da Faculdade de Psicologia da UFJF, a militante Bruna Leonardo, também prestou apoio a Lucas juntamente com a Comissão de Direitos Humanos da OAB. Para ela, o que o jovem sofreu foi uma tortura. “Muito assustador que em Juiz de Fora isso tenha acontecido. Eu já fui vítima de homofobia, outras pessoas que conheço também, mas nunca de uma forma tão cruel. O que fizeram com ele foi uma tortura e poderiam tê-lo levado à morte, pois foi encurralado e queimado. Ele poderia ter ficado cego ou até sido morto se o taxista não tivesse o ajudado. É assustador saber que estão partindo para a tortura, pelo simples fato de o outro ser gay, além do fato de ser negro. As pessoas acham que podem fazer o que quiser, quando acham que alguém é pobre, negro e gay. Acham que suas atitudes vão ficar por isso mesmo”, dispara Bruna.
Bruna também reconhece o papel importante da divulgação dos fatos. “Serve para mostrar aos agressores e para os homofóbicos que a sociedade de Juiz de Fora não irá compactuar com isso, pois sempre foi vanguarda nos movimentos LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e intersexuais). Vamos lutar para que esse caso não fique impune e que não aconteça mais. A divulgação serve para repudiar qualquer tipo de violência contra as pessoas que são diferentes. Não dá para ficar indiferente.”
A professora da Faculdade de Educação da UFJF, Daniela Auad, que integra o Observatório de Gênero e Raça de Minas Gerais e é líder do coletivo e grupo de pesquisa Flores Raras, observa que a violência e o preconceito devem ser debatidos em todos os espaços da sociedade como forma de combatê-los.
Outros casos chocaram a cidade nos últimos anos
Os casos de violência motivados por homofobia não são raros em Juiz de Fora, embora sejam pouco notificados. Só nos últimos cinco anos, pelos menos quatro ocorrências ganharam repercussão e chocaram pela crueldade. Um dos crimes culminou no homicídio de um servente de 29 anos, brutalmente assassinado a pedradas em via pública, em outubro de 2015. Ele teria tentado defender um rapaz, que teria sido agredido por um adolescente, 16, possivelmente por motivos homofóbicos, no Bairro Bela Aurora, na Zona Sul. Depois de questionar a vítima sobre o porquê de ela estar defendendo o outro, o adolescente começou a golpeá-la com socos e chutes. Quando o servente tentou escapar das agressões, foi surpreendido por uma pedrada na cabeça e caiu no chão. Não satisfeito, o jovem desferiu pisões e chutes na cabeça dele e mais duas pedradas fatais. No local, ainda foram recolhidos três blocos de cimento, que teriam sido usados nas agressões.
No mesmo mês, uma jovem, 18, e o companheiro dela foram indiciados por tentativa de homicídio duplamente qualificado pela agressão cometida contra um adolescente, 17, motivada por homofobia. O crime aconteceu no Bairro Nova Benfica, Zona Norte. O jovem foi agredido a pauladas, socos e chutes por um grupo de quatro pessoas, que ainda teria insultado a vítima com xingamentos homofóbicos. Ele teve o rosto desfigurado e ficou com diversos hematomas nas costas, só conseguindo se desvencilhar do grupo com a ajuda de um amigo que passava no momento. O caso causou comoção, mobilizando inclusive os moradores do bairro em uma passeata.
Em dezembro de 2013, três homens, de 32, 36 e 40 anos, tiveram a casa invadida enquanto dormiam e foram agredidos por dois bandidos, um deles armado com faca, no Bairro Jardim Casablanca, Cidade Alta. Segundo as vítimas, as agressões teriam sido motivadas por homofobia. Os suspeitos também provocaram danos na residência e em utensílios domésticos. Eles teriam dito ainda que iriam saquear o imóvel durante a ausência dos moradores. Os homens contaram aos policiais que já teriam sofrido ameaças de morte dos supostos autores, os quais não desejariam a presença de homossexuais no bairro.
Já em janeiro de 2012, um cabeleireiro, 19, foi violentado sexualmente e agredido a pauladas no Bairro Santa Maria, Zona Norte. A vítima foi vista saindo de um matagal em estado de choque, apenas vestindo cueca e uma camisa de malha. O jovem teria sido estuprado por dois homens, além de um terceiro ter ejaculado em sua face. Uma mulher, que teria servido de isca para atrair a vítima, teria fotografado toda a ação dos abusadores. Na época, o cabeleireiro contou que estava recebendo ameaças e já havia registrado um boletim de ocorrência. O crime foi tratado como estupro, com motivação homofóbica.