Levantamento divulgado pela Promotoria de Justiça da Vara do Tribunal do Júri de Juiz de Fora aponta que 40% dos homicídios e das tentativas de assassinato não solucionados na cidade nos últimos 12 anos estão concentrados em apenas 15 bairros. A pesquisa, realizada pelo promotor Hélvio Simões Vidal, considerou 900 dos 1.050 inquéritos instaurados pela Polícia Civil para apuração dos crimes contra a vida ocorridos na comarca, entre os anos de 2010 e 2021, e que permanecem com investigação inconclusiva, sem abertura do processo criminal.
Os dados revelam que as 15 áreas com maior incidência dos delitos contra a vida sem autoria definida até o momento estão distribuídas por cinco das sete regiões da cidade. A Zona Norte lidera a lista com seis bairros, começando por Benfica, que está no topo, com 43 casos. Na sequência estão Jóquei Clube (37), Vila Esperança (33), Jardim Natal (28), Santa Cruz (28) e Milho Branco (18). A região Leste vem logo depois, com Santa Rita (23), São Benedito (17), Linhares (17) e Vila Alpina (12). Na região Sudeste, os destaques são Vila Olavo Costa (32) e Santo Antônio (21). Também com dois bairros, a Zona Sul aparece com Ipiranga (30) e Sagrado Coração de Jesus (14). Por fim, está o Centro, onde aconteceram 15 homicídios ou tentativas de assassinato ao longo de mais uma década que continuam sem resposta.
De acordo com o MP, os números levantados foram extraídos do Sistema de Informatização dos Serviços das Comarcas (Siscom), disponibilizado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para consultas de processos físicos em tramitação na Vara do Júri e nas delegacias de polícia. “Juntos, esses bairros totalizam 368 mortes ou tentativas de homicídio sem autoria, o que corresponde a 40,88% de todos os casos (analisados) sem conclusão”, observa o promotor.
Ainda segundo o levantamento feito pela Promotoria do Tribunal do Júri, com base nos Registros de Eventos de Defesa Social (Reds) e nos inquéritos, o motivo indeterminado alcançou 463 ocorrências (51,44%), os atritos pessoais chegaram a 173 (19,22%), o tráfico de drogas foi a causa provável de 123 crimes (13,66%), vinganças teriam motivado 119 deles (13,22%), enquanto ações passionais estariam relacionadas a 22 casos (2,44%).
Impunidade
Em outro ponto da pesquisa, o MP destaca que os números encontrados indicam que, em Juiz de Fora, os homicídios e tentativas sem perspectiva de levantamento da autoria colocam a cidade no cenário nacional com taxa de solução para assassinatos de apenas 44%. Ainda conforme o MP, quanto mais tempo demora a atividade investigativa, mais difícil fica a identificação de autores, e o destino das apurações provavelmente será o arquivamento.
“Muito pior é o cenário para as vítimas sobreviventes e os familiares das pessoas mortas, já que os casos em tramitação não chegarão a um autor e muito menos ao esclarecimento do motivo do crime, nem há perspectiva de instauração de um processo”, observa o promotor Hélvio Simões. Segundo ele, a pesquisa demorou dez meses para ser realizada, com a finalidade de auxiliar os trabalhos da Promotoria. Ele acredita que o resultado das áreas apontadas com maior incidência de crimes contra a vida não desvendados também pode auxiliar na implementação de políticas públicas.
Déficit de policiais civis compromete investigações
Procurada pela Tribuna para comentar a pesquisa realizada pela Promotoria do Tribunal do Júri, a Polícia Civil divulgou que atualmente tramitam na Delegacia Especializada de Homicídios 259 inquéritos de assassinatos consumados e outros 571 de tentativas de crimes contra a vida, além de sete procedimentos relacionados à Vara da Infância e Juventude, por envolverem adolescentes. “Ressalta-se que a Delegacia Especializada de Homicídios foi criada neste formato em outubro de 2014 e que os inquéritos afetos aos anos anteriores ainda em tramitação junto à Polícia Judiciária ficam a cargo do Núcleo de Acervo Cartorário (NAC).”
O titular da especializa, Rodrigo Rolli, enfatiza que a delegacia voltada para os crimes contra a vida possui como policiais apenas um delegado, um escrivão e quatro investigadores, “muito aquém do necessário para dar conta de todos os homicídios consumados e tentados, não só de Juiz de Fora, mas também das cidades de Chácara e Coronel Pacheco”. Ainda assim, o esforço da equipe envolvida contribuiu para a queda dos delitos que resultaram em morte no decorrer dos últimos anos, saindo de um patamar em torno de 130 casos por ano no município, entre 2013 e 2017, para uma queda significativa, que chegou a 55 crimes, em 2020, e 41, no ano seguinte, conforme dados da Polícia Civil.
Dessa forma, a instituição confirma que, embora as tentativas de homicídio sejam maioria, a prioridade da equipe reduzida está na solução das mortes. Em relação aos casos que não acabaram em óbitos, a Polícia Civil informa que “vem trabalhando nos últimos anos em conjunto com a Polícia Militar, com troca de informações e monitoramento de possíveis autores e vítimas em potencial”. O objetivo é tentar evitar o crime, antes que ele aconteça.
“Há cinco anos os números de homicídios vêm diminuindo, e as condenações aumentando, comprovando a eficácia do trabalho de investigação realizado por esta especializada. Esse resultado foi possível devido ao trabalho conjunto entre PMMG, PCMG, Ministério Público e Poder Judiciário, com a utilização e implementação por esta delegacia das testemunhas sigilosas e, no ano passado, das oitivas gravadas. Ou seja, houve aperfeiçoamento das investigações, além do monitoramento e mapeamento adquirido no decorrer desses anos, tanto de autores, quanto de áreas (de incidência criminal), ocasionando um impacto junto à ‘criminalidade'”, garantiu Rolli.
Ele acrescentou que entre os inquéritos em tramitação na especializada estão aqueles que já foram concluídos e encaminhados ao Poder Judiciário, mas que retornaram para diligências complementares, “haja vista que o órgão ministerial não conseguiu formar a sua opinio delicti”. “Uma das razões do acúmulo de inquéritos policiais ocorre devido à falta de policiais, fato este público e noticiado há diversos anos pela imprensa local.” Rolli reafirmou que a apuração dos homicídios consumados em Juiz de Fora gira entorno de 90% nos últimos anos, percentual que cai se forem levadas em conta também todas as tentativas de assassinato.
Sobre os 15 bairros citados na pesquisa com maior concentração das investigações inconclusivas, o delegado observa que muitos deles tiveram queda significativa da violência contra a vida, como Santo Antônio, Olavo Costa e São Benedito. “Ressaltamos que o foco das investigações decorre do serviço de inteligência policial desta unidade ao se deparar com a possibilidade de “guerras ou conflitos” interpessoais que irão ocasionar maior número de mortes, visando a salvar mais vidas e diminuir a violência, buscando evitar e pôr fim às vinganças privadas que sempre dominaram a cidade.”
Caso Frederico Arbex segue em investigação
Como exemplo de homicídio ainda não desvendado em Juiz de Fora, o Ministério Público citou o empresário Frederico Márcio Arbex, 43 anos, executado com nove tiros durante emboscada em 11 de dezembro de 2020, nas imediações da estrada vicinal de acesso ao condomínio Villagio da Serra, próximo ao Mirante da BR-040, na Cidade Alta. Fred Arbex, como era conhecido, havia deixado sua residência no começo daquela manhã, conduzindo uma caminhonete, quando houve o choque intencional de um caminhão-baú, com placa de Campos dos Goytacazes (RJ). Em seguida, um atirador abriu fogo contra a vítima. Antes da fuga, os criminosos ainda atearam fogo no caminhão.
Conforme o MP, a investigação foi encaminhada à Justiça em 12 de março de 2021 com pedido de busca e apreensão e prisão temporária de dez pessoas, “pedido indeferido por falta de embasamento”. Também segundo a Promotoria, o delegado de Homicídios renovou o pedido de prisão de duas pessoas, supostamente envolvidas como executores, “mas o pedido também foi indeferido, já que o inquérito foi remetido ao gabinete do Ministério Público somente com a indicação de duas pessoas supostamente responsáveis pela emboscada, o que foi considerado insubsistente pela promotoria por ser claramente um crime de mando”.
De acordo com o órgão, as medidas sigilosas para levantamento do fato foram solicitadas pela Delegacia de Homicídios em abril de 2021, “mas já sem efetividade, já que a polícia não conseguiu levantar sequer as chamadas realizadas e recebidas no telefone celular de Arbex no dia do homicídio”.
Segundo a Promotoria, uma das pessoas apontadas como suspeita de participar da emboscada – o dono do caminhão usado para interceptar a vítima – tinha sido vítima de crime de estelionato em Campos de Goytacazes, onde uma quadrilha especializada, que falsifica selo cartorário e celebra contrato de locação com proprietários para execução de serviços nas obras de Porto do Açu (RJ), está sendo procurada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). Contra outro envolvido, com antecedentes criminais e que teria sido o responsável pela logística e estudo dos hábitos da vítima, “a investigação somente conta com denúncias anônimas”.
O MP conclui que não houve avanços no homicídio de Arbex e que esse não seria um caso isolado, “já que os crimes mais sofisticados, praticados por criminosos organizados e com expertise raramente são detectados, indiciados e processados, o que corresponde à realidade nacional”.
Inquérito conta com 800 páginas
Sobre o inquérito do assassinato de Frederico Arbex, que conta com mais de 800 páginas, a Delegacia Especializada de Homicídios informou ter sido necessário um trabalho de pelo menos três meses para aprofundar as informações, diante do histórico da vítima, “com a possibilidade de envolvimento de diversos ‘inimigos’.
Nos últimos anos, Arbex esteve à frente de bares e casas noturnas na cidade. Segundo levantamento da Polícia Militar, entre 2011 e 2020, o empresário foi citado em 31 boletins de ocorrência, seja como vítima ou envolvido. Em alguns deles, aparece como suspeito de delitos como ameaça; prostituição/exploração sexual de menores de idade em boate; casa de prostituição; exploração de florestas ou de área de preservação permanente; tráfico de drogas; jogos de azar (caça-níqueis); roubo/ violência contra mulher.
Em setembro de 2020, houve solicitação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), atendendo a requerimento do Ministério Público, para instauração de inquérito policial para investigar possíveis crimes de organização criminosa, eventual lavagem de dinheiro, lesão corporal e utilização indevida de bens públicos, bem como da contravenção de prática de jogos de azar, cometidos, em tese, por um agente público em associação com Frederico Arbex e mais três pessoas. Também naquele ano, houve registro de cinco ocorrências que descrevem desacertos entre terceiros relacionados a terrenos que teriam sido adquiridos pelo empresário em um loteamento na Zona Rural de Chácara.
Além de ter sido citado em vários boletins de ocorrência, o empresário juiz-forano esteve em 2012 na mira de audiências públicas da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, por suspeita de ser o pivô de um esquema de pagamento de propinas a policiais civis e militares para manter o funcionamento ilegal de jogo do bicho e de máquinas caça-níqueis em Juiz de Fora. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que seria criada para apurar as denúncias, no entanto, não seguiu adiante por falta de assinaturas. Dessa forma, as apurações foram encaminhadas ao MP.
Complexidade
“Apesar da enorme dificuldade e alta complexidade do caso, esta especializada conseguiu levantar informações sobre a autoria e constatar que o caminhão utilizado na ação delitiva teve seus números identificadores apagados, demonstrando um profundo grau de planejamento anterior à execução”, afirmou Rolli. Essa premeditação, conforme a polícia, também fica evidente na escolha do local do crime: uma estrada rural de acesso a uma rodovia federal. “Foram analisadas inúmeras horas de filmagens de diversas câmeras, sendo possível visualizar um veículo de apoio ao caminhão, entretanto, não possível identificá-lo devido à falta de qualidade das imagens.” A Polícia Civil também verificou todos os veículos que passaram pelo pedágio e outras rodovias no entorno naquela data. “Contudo, não foi possível obter testemunhas que constatassem as informações levantadas quanto à autoria por esta especializada.”
O delegado Rodrigo Rolli ressalta que um dos executores do crime chegou ser identificado. “É uma pessoa com vasta ficha criminal, que pratica crimes de alta complexidade e sofisticação em outros estados do país, efetivamente na região Sudeste. Tal autor já se encontrava foragido por outros crimes, o que demonstra sua alta periculosidade. Pessoas que poderiam comprovar sua participação não o fazem por temerem represálias, dificultando, desta forma, uma conclusão mais cabal do crime em si.”
A autoridade policial complementa que foram representados inúmeros pedidos de prisões e de busca e apreensões “a fim de obter outras provas que pudessem corroborar sua linha de investigação. Entretanto, conforme o delegado, tais pedidos foram negados pelo Ministério Público. “As investigações continuam no intuito de comprovar o envolvimento do suspeito e de desvendar mais participantes do homicídio”, conclui Rolli.