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Filho reencontra mãe após 38 anos de separação

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Ele nasceu em 1979, do ventre sadio de uma mulher cuja mente tinha adoecido. Caçula entre três irmãos, Adair Júnior Landim, o filho mais novo de Zélia Landim, ficou apenas seis meses na companhia da mãe biológica que, aos 26 anos, iniciou um longo histórico de internações em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora. Júnior passou um tempo sob os cuidados de vizinhas, em Barra Mansa (RJ), enquanto o câncer do pai consumia as últimas forças do comerciante de 42 anos. A morte do patriarca decretou o fim de uma família. Sem ter como cuidar de si mesma, Zélia viu seus três filhos serem adotados por parentes do marido. Cada um deles foi morar em uma cidade do país. Viúva, aos 30 anos, e com os filhos espalhados por Minas e São Paulo, a então paciente psiquiátrica acreditou que sua vida tinha se esvaziado de sentido. Ao perder seus amores, ela se perdeu.

Passou mais de três décadas vagando por manicômios, carregando no peito a dor da saudade daqueles que não viu crescer. Sentia-se morta-viva. Mas o passado esperou com paciência que o tempo desatasse seus nós. Quando os hospitais deixaram de ser moradia em Juiz de Fora, Zélia encontrou nas residências terapêuticas um lugar para recomeçar sua história. Passou os últimos sete anos se reconstruindo através da experiência do tratamento em liberdade. Mas seu pleno renascimento só aconteceu no mês passado, quando, aos 65 anos de idade, ela pôde finalmente ninar o seu caçula, colocando fim a quase quatro décadas de separação.

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“Eu vim aqui conhecer a minha mãe. Você a conhece?”, perguntou, sorrindo, Adair, 38 anos, ao abrir a porta do quarto de Zélia, hoje moradora de uma residência terapêutica administrada pela Associação Casa Viva na Rua João Dias, no Bairro Poço Rico. “Sou eu”, respondeu a mulher que não cabia mais em si de saudade. Naquele momento, os dois transformaram-se em pranto. “Meu Juninho voltou”, repetia a mãe no ouvido do filho, durante um abraço que pareceu durar uma eternidade.

A cena emocionante foi assistida em silêncio pelas outras moradoras da casa que também sonham com o dia em que terão os filhos em seus braços de novo. Ao entrar na vida de Zélia, Júnior tornou-se esperança para ela e para milhares de mulheres que perderam seus vínculos afetivos em função da doença mental que, no Brasil, foi tratada até o início dos anos 2000 com isolamento.

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“Doidinha”
Reencontrar um dos três filhos foi a oportunidade que Zélia precisava para fazer as pazes consigo mesma. “Eu tinha raiva da minha cabeça. Enquanto estava internada, pensava: mas que porcaria de cabeça. Foi horrível perder meu marido e meus três filhos de uma vez só. Fiquei doidinha. Tomei muito choque na cabeça sem precisar. Passei a vida orando a Deus para que ele reaproximasse meus filhos de mim. Ver o Juninho foi como se os anos não tivessem passado. Sinto que dá para recuperar o tempo perdido”, comemorou Zélia.

Para Júnior, a aceitação daquela mãe devolveu-lhe paz, acalmando os dragões internos que cresceram dentro dele alimentados por dúvidas para as quais não encontrava respostas. “Eu não viajei de Santos (SP) para Juiz de Fora para perdoar ninguém, fui apenas dizer a Zélia que tenho amor por ela e gratidão por ter me dado a vida”, comentou, emocionado, o dono do bistrô e café Saluca. Mesmo sem ter convivido com o seu pai comerciante, Júnior seguiu a profissão de quem tem muito mais em comum: a paixão pelo violão e pelos outros cinco instrumentos que toca.

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Resgate do passado foi necessário

Mais de 570 quilômetros separam Santos, cidade onde Júnior mora, de Juiz de Fora. De ônibus, a viagem, ocorrida no dia 30 de março de 2018, durou cerca de 11 horas. Mas o filho de Zélia sabe que levou 38 anos para chegar até aqui. Entre ele e a mãe havia um vácuo que o tempo jamais conseguiu preencher. Embora Júnior tenha crescido sabendo de sua origem, seu coração jamais se acalmou. Quando criança, ele tinha medo de ir ver a mãe biológica e não voltar mais para os braços de Maria Aparecida de Sousa, o anjo de sete filhos que adotou o oitavo, amando o bebê de 6 meses como se ele tivesse saído de dentro dela.

Adair Júnior hoje vive com a esposa Renata e o filho Iago, de 5 anos, em Santos (SP)

Foi em Vargem Grande Paulista (SP) que Júnior passou uma infância feliz. Aos 2 anos, a mãe adotiva o levou para ver Zélia, em Barra Mansa, e, apesar de ser muito pequeno, sua memória guardou flashes daquele encontro estranho no qual se lembra de ter visto um homem de muletas, muito doente, lavando roupas em um canto da casa, e uma mulher mais jovem do que ele sentada em uma mesa, indiferente ao ambiente, escrevendo em um caderno. Lá fora, o Rio Paraíba seguia seu curso. Lá dentro, o pai e a mãe biológica de Júnior também. Assim, o menino continuou na companhia da mãe que cuidou dele. O endereço da casa onde morava foi dado por Maria a Zélia, mas a mãe biológica de Júnior diz que durante uma enchente do rio tudo se perdeu, inclusive o registro do paradeiro do filho caçula.

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Separado de Zélia, Júnior chegou à adolescência tendo horror de pensar que existisse outra mãe em sua vida que não fosse Maria. Na idade adulta, ele não conseguia elaborar sua história. Casou-se com a professora de inglês Renata e foi, aos 33 anos, quando tornou-se pai de Iago, que sentiu necessidade de fazer o caminho de volta. Ao abrir o baú da sua vida, Júnior percebeu que havia tantas lacunas que o jeito seria juntar os pedaços que faltavam. Assim, foi parar em Barra Mansa, em 2011, para revisitar sua história e conhecer os três filhos do primeiro casamento de seu pai de quem havia herdado o próprio nome. Separado da primeira esposa, o pai de Júnior conheceu Zélia em seu bar. Pagou um guaraná para ela. O gesto a comoveu. Zélia, que já sofria de transtornos mentais, se apaixonou pelo comerciante com quem ficou casada por dez anos. Dessa união nasceu Altamir, Bárbara e Adair – o Júnior -, último filho do casal. Os três cresceram separados embora o sangue os unisse.

Na volta a Barra Mansa, Júnior foi bem recebido pelos irmãos por parte de pai. Deixou o Estado do Rio sabendo que sua próxima parada seria Juiz de Fora. Sete anos se passaram desde então. Foi com a esposa de Altamir, o filho mais velho de Zélia, que o caçula conseguiu um telefone para localizar a mãe. Chegou, então, ao psicólogo Ricardo Sabino, que, desde 2001, acompanha a usuária da rede de saúde mental de Juiz de Fora. O psicólogo a conheceu durante o período em que ela era paciente do Hospital São Marcos, onde permaneceu por mais de uma década. Depois, manteve contato com ela nas consultas em seu consultório.

Foi Ricardo quem encorajou Júnior a vir. “Trabalhei no São Marcos entre 2001 e 2010 e lá a Zélia já falava desses filhos. Tinha um caderninho, escrevia o nome deles, chorava. Foi uma irmã dela quem passou o telefone do filho mais velho. Ele sempre quis ver a mãe, mas não conseguiu. Aí, neste movimento deste filho, o Júnior descobriu toda essa história. Um dia, o Júnior me mandou uma mensagem de WhatsApp e perguntou se seria possível conhecer a mãe. Respondi que não só era possível como necessário. Aí ele foi se fortalecendo. Um belo dia, ele disse: agora eu vou. Acompanhei a história de sofrimento dela nos hospitais e sinto que participei um pouquinho da possibilidade de alguém com um problema tão sério e grave ser feliz”, afirma Ricardo.

O coordenador das Residências Terapêuticas da Associação Casa Viva, Rodrigo Mitterhofer, diz que elas são uma conquista após o fechamento dos hospitais psiquiátricos. “Elas são o melhor aparelho de interface para esses moradores. Aqui a gente consegue aperfeiçoar essa questão da autonomia e da dignidade do cidadão.”

Aos 65 anos, mãe tatua nome do filho no braço

Rever Juninho, como Zélia se refere ao filho mais novo, provocou uma revolução nela. Mais do que nunca, a ex-paciente de hospitais psiquiátricos, agora cidadã de uma cidade sem manicômios, quer viver para juntar sua família. Sonha com a volta de Bárbara e Altamir, os dois filhos mais velhos que moram, respectivamente, em Carrancas (MG) e em São Vicente de Minas. “Eu não me sentia feliz. Agora sinto. Tudo mudou depois que vi meu filho, minha rapa do tacho. Ele me abraçou e me beijou. E agora vou ver os outros. É como se eu tivesse renascido”, comemora, emocionada.

 

A mãe de Adair faz tatuagem com o nome do filho em homenagem à sua volta. História emocionou até mesmo o tatuador Iohran Steffen

Transbordando de amor, Zélia quer que o mundo saiba sobre a existência de Júnior. Por isso, há uma semana, ela foi com Luzia, amiga que mora na mesma residência terapêutica que ela, a um estúdio de tatuagem localizado no Bairro Poço Rico. “Descobri o local descobrindo, uai”, brinca ela. Lá, Zélia combinou o preço e o desenho que queria para marcar sua pele: o nome de Júnior acompanhado de um coração.
Com apenas 20 anos, o tatuador Iohran Steffen, que cresceu acompanhando o trabalho do pai no estúdio, se emocionou com o passado de Zélia. “É gratificante demais poder fazer parte de uma história assim. Poder marcar uma lembrança e um sentimento na pele de alguém é algo muito especial. Ainda mais uma lembrança tão bonita como essa”, comentou.

Para quem teve três filhos de parto normal, Zélia tirou de letra a dor da tatuagem. Comportou-se com bravura, e o resultado ficou tão bom que ela voltou no dia seguinte para tatuar uma estrela. Por telefone, ao saber da homenagem que a mãe tinha feito para ele, Júnior celebrou. “Minha maluquice tem raízes. Estou descobrindo que minha mãe é uma roqueira sensacional. Tem cabelo vermelho, é tatuada e curte John Lennon. É praticamente uma Rita Lee. Ganhei uma existência”, disse, rindo, o homem que aprendeu que não há nada mais insano do que julgar os outros.

“Quando a gente se põe no lugar do outro um segundo muda totalmente de atitude. Quem mais ganhou com essa história fui eu. Sou um cara muito melhor depois dessa última Páscoa que passei aí. Foi um verdadeiro renascimento.”

 

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