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Orgulho de ser preto

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Hiram Rodrigues, Evillin Ribeiro, Milton Neto, Micaella Faustino e Dhara de Souza, integrantes do Laboratório e do Coletivo Descolônia (Foto: Leticya Bernadete)

O dia 20 de novembro foi escolhido no Brasil para refletir sobre a consciência negra. A data faz referência à morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e figura de resistência dos negros contra a escravidão no Brasil. Em 2022, a luta da população negra ainda continua, seja no âmbito cultural, social ou econômico. E outras questões perpassam esta batalha diária, como o próprio reconhecimento como pessoas negras, que muitas vezes é despertado diante de episódios de violência, bullying e racismo.

A Tribuna entrevistou jovens pretos para entender suas manifestações de orgulho de quem são, seja na arte, nos posicionamentos, na moda, na trajetória estudantil ou mesmo nas formas que encontraram de partilhar suas vivências.

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O racismo estrutural – quando a organização da sociedade privilegia uma etnia em detrimento de outras por meio de práticas institucionais, históricas ou mesmo culturais – é uma das principais barreiras para a construção da identidade negra em inúmeros jovens, como mencionado e vivido por Leiliane Germano, de 28 anos. “Na infância, eu vivi um cenário em que demorei para me entender enquanto negra. Ouvia muito: ‘ah, mas você tem a pele clarinha’, ‘você é morena clara’ etc.”, conta.

A jovem é mestranda em Comunicação pela UFJF e integrante do coletivo Subverta e do Fórum Feminista 8M, e foi neste movimento que seu reconhecimento como mulher negra se iniciou. “A minha principal manifestação hoje é na atuação no movimento social. E nos meus cabelos. A partir do momento em que reconheci minha negritude, trouxe para meus cabelos a liberdade e a naturalidade. O meu cabelo, pra mim, também é uma manifestação de luta e orgulho.”

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O meu cabelo, pra mim, também é uma manifestação de luta e orgulho, diz Leiliane Germano (Foto: Estela Loth)

Para Leiliane, o cabelo, as roupas que remetem à moda afro, a música, a literatura, também são formas de resistência e de luta contra o racismo. “Acho que a moda e a cultura são fundamentais pra gente resgatar toda a estética negra que nos foi roubada durante o período de escravidão e todos esses anos de racismo estrutural que ainda vivemos no país. O resgate da nossa estética também é um resgate cultural, é uma forma de manter nossa ancestralidade viva e valorizar nossa cultura que vem de longe e foi silenciada por anos na tentativa de embranquecimento da população brasileira.”

Para que essa consciência da identidade e orgulho negro se manifeste, especialmente em crianças, ainda há a carência de políticas públicas, conforme Leiliane. A Lei 10.639, de 2003, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira”. Entretanto, o texto não foi aplicado efetivamente.

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“Precisamos de mais ações que contem nossa história pela perspectiva do povo negro e não pela voz dos brancos; que contem nossa cultura, costumes e saberes. Precisamos da valorização de nomes negros que estiveram à frente da luta pela nossa liberdade e o fim da escravidão e isso precisa estar nos livros oficiais de história”, ressalta Leiliane.

‘A casa branca balança quando o escravo aprende a ler’

Em 2016, um grupo de estudantes do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF se uniu por conta de um incômodo em relação ao que estava sendo ensinado sobre história da arte na academia e em escolas. No caso, o currículo sempre foi voltado apenas para a arte europeia. A partir dessa reunião, surgiu o Laboratório e o Coletivo Descolônia, para atender a demanda dos alunos sobre os estudos da arte afrocentrada.

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Na última semana, a Tribuna se reuniu com cinco integrantes do coletivo para conversar sobre a consciência e o orgulho de serem pretos: Evillin Vitória Sales Ribeiro, de 20 anos, Hiram Rodrigues, 21, Micaella Aparecida de Souza Faustino, 20, Dhara Aparecida Gonçalves de Souza, 20, e Milton João de Souza Neto, 25.

Os jovens cresceram tendo seus próprios familiares como principais referências de pessoas pretas e de discussões sobre as questões raciais presentes na sociedade brasileira. A descoberta como pessoas pretas têm traços em comuns com outros jovens da mesma faixa etária: pela violência, bullying e “brincadeiras” de cunho racistas. No caso de Milton, por exemplo, veio de uma abordagem policial quando tinha 16 anos, onde foi vítima de racismo e homofobia.

“Antes disso, eu performava um homem branco porque alisava o meu cabelo, eu tentava não pegar muito sol pra minha pele não ficar escura, eu via, ouvia e lia piadas de cunho racista e eu entendia aquilo como uma brincadeira. Quando eu percebi que aquilo estava me atingindo, foi quando consegui ver realmente qual é a minha posição social dentro da sociedade”, conta.

Primeira pessoa da família a entrar em uma universidade, Milton, que hoje atua como professor na rede estadual, tem como filosofia uma frase que leu há um tempo: “a casa branca balança quando o escravo aprende a ler”. Como apontado pelos jovens, políticas públicas de cotas, por exemplo, são passos importantes de reparação histórica, porém, ainda carregam questões a serem resolvidas, muitas vezes envolvendo a permanência dos jovens nas universidades. “A ideia das políticas é incrível. Só que o problema é a gestão como um todo, é o interesse em manter. Independente do governo, faltam pessoas realmente interessadas em geri-las”, aponta Micaella.

As barreiras envolvendo pessoas negras perpassam questões culturais, sociais, econômicas, ou, como sintetizado por Evillin, “é muito difícil ser preto na sociedade”. Mais ainda ser uma mulher preta, conforme Micaella, que destaca também o papel de Dandara dos Palmares, esposa de Zumbi, que também teve atuação simbólica fundamental na luta contra a escravidão dos negros no Brasil.

O Dia da Consciência Negra faz referência à morte de Zumbi, mas, como apontado por Milton, não é um dia de comemoração, mas sim de reflexão. “É o dia para as pessoas relembrarem dos anos de escravidão, da segregação que acontece dentro da sociedade, da oportunidade que acontece para algumas pessoas e não para outras. É o dia para pensar na marginalidade, em quantas pessoas são mortas por dia e quantas dessas são pretas. É o dia de pensar na abordagem policial: por que uma pessoa branca é abordada de uma maneira e uma pessoa negra de outra?”, questiona.

Jornalista Davi Acácio integra o projeto Black Estima, que busca compartilhar a vivência de jovens negros por meio de entrevistas, abordando a caminhada para moldar a autoestima. (Foto: Arquivo Pessoal)

A descoberta de ser negro

“Neusa Santos, uma psicanalista, fala que a descoberta de ser negro é mais que a constatação do óbvio. De fato, você percebe que, em pontos políticos, sociais e até mesmo econômicos, a sua presença começa a fazer diferença e você começa a notar o que é ser negro na sociedade brasileira. Infelizmente, para mim, foi em um processo de violência policial.” A tomada de consciência que ocorreu com Davi Carlos Acácio foi a mesma que afeta inúmeros jovens negros brasileiros.

O jornalista de 28 anos conta à Tribuna que não se lembra de ter conversado sobre questões raciais no ambiente escolar por conta do “tabu” envolvendo o racismo, que muitas vezes se manifestava em forma de brincadeiras “de mau gosto”. “Quando o racismo aparece dessa forma, alguns véus para entender a sociedade que a gente vive começam a ser rasgados.”

Davi procura estudar as relações étnico-raciais e compartilhar suas concepções sobre o tema em seus textos como jornalista e em palestras com jovens negros em escolas. Esta foi a forma que ele encontrou de manifestar seu reconhecimento como homem negro. “Meninos e meninas jovens, em geral, não precisam que esse pensamento crítico venha através de um cacetete batendo nas costas. Acho que temos que levar esse debate e descortinar isso para entender o mundo em que você vive sem precisar apanhar na rua.”

Além disso, Davi também integra o projeto Black Estima, que busca compartilhar a vivência de jovens negros por meio de entrevistas, abordando a caminhada para moldar a autoestima. “O projeto sustenta essa pauta da consciência e do orgulho negro explicitando para esses jovens, para o público que atingimos, que a gente tem que ser a gente mesmo e que nós somos os únicos representantes do nosso sonho na face da terra, tal como diz o Emicida.”

Mariana Magalhães, 28 anos, encontrou nas redes sociais uma forma de se manifestar como uma mulher preta e de compartilhar suas vivências como mãe. (Foto: Arquivo Pessoal)

Negritude e maternidade

Em seu perfil no Instagram, a produtora de conteúdo Mariana Magalhães, 28 anos, encontrou uma forma de se manifestar como uma mulher preta e de compartilhar suas vivências como mãe. “A nossa existência e a nossa maternidade também são políticas, porque criamos os nossos filhos em um mundo que não vai ser doce com eles, em que eles terão que se defender, se posicionar.

Historicamente, nós, mulheres pretas, somos a maioria das mães solo, somos trabalhadoras e tidas como ‘guerreiras’ quando falamos de maternidade, quando na verdade somos mulheres sobrecarregadas e que vivemos numa estrutura machista e racista”, destaca. “Mas, para além disso, também somos pessoas reais, que riem, que brincam e educam crianças. Então falar sobre maternidade preta muitas vezes é pesado, mas também tem a intenção de humanizar e fortalecer o maternar.”

A consciência política de Mariana se formou a partir de sua própria família, tendo sua mãe, uma professora, como maior influência na construção e reconhecimento como mulher preta. De acordo com ela, a mãe sempre buscou trabalhar sobre negritude nos conteúdos que levava para a escola. Hoje, ela acredita que a valorização identitária é um ponto essencial para as novas gerações de crianças e adolescentes pretos.

“Fico pensando que se hoje a representatividade já é escassa e criticada, isso era muito pior alguns anos atrás. Então fortalecer a nossa história, a nossa cultura, a nossa cor e os nossos traços é cada vez mais afirmar a importância e relevância da nossa existência”, aponta. “Acho que ainda temos um caminho longo pela frente, mas fico imensamente feliz em ver que o mundo que vamos construindo pros nossos filhos vai ser um pouco mais acolhedor, e não só em novembro.”

Brasil ainda carece de avanços em questões raciais, aponta Martvs Chagas

Em termos de políticas públicas e ações afirmativas, o Brasil ainda tem muito o que avançar quando se trata de questões raciais. A perspectiva é de Martvs Chagas, secretário de Planejamento do Território e Participação Popular da PJF e integrante da equipe de transição do futuro governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Martvs compõe o grupo técnico escalado para discutir ações voltadas para a promoção da igualdade social pelos próximos quatro anos.

Para Chagas, em nível nacional, houve um retrocesso nos últimos anos das políticas de promoção da igualdade racial. Por outro lado, cada vez mais pessoas negras estão ocupando espaços de poder político, mas ainda está longe do ideal. A equipe de transição está realizando diagnósticos do ponto de vista orçamentário, estrutural e político, porém, há uma expectativa quanto aos próximos anos por conta do programa de governo de Lula.

“O plano apresenta alguns caminhos que o próximo governo vai trilhar na tentativa do combate efetivo ao racismo estrutural”, diz. “O primeiro é a defesa e a promoção da vida com dignidade. Isso significa dizer que nós temos que criar mecanismos para diminuir a mortalidade das pessoas negras, sejam elas jovens, crianças ou adultos e, ao mesmo tempo, que essa vida seja digna; que as pessoas não apenas sobrevivam, mas que elas tenham condições de viver plenamente. Para isso, entra a segunda ideia-força, que é uma inserção econômica dessa população com qualidade através de políticas de saúde, de trabalho, de habitação e de emprego e renda”, explica.

Chagas ainda destaca o quanto as pautas de políticas públicas podem contribuir para a construção da identidade e auto-afirmação dessas pessoas enquanto negras, ponto que já está marcado pelo 20 de novembro. “Estamos vendo que falta mais jovens, adultos e crianças se assumindo enquanto pessoas negras. Isso é muito importante. Ao contrário do que alguns dizem, não para a divisão, mas para o reconhecimento das diferenças. Isso também tem a ver com as políticas públicas que beneficiam a população negra.”

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