Quase quatro anos depois de ver seu nome e sua imagem vinculados de forma criminosa à facada do então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro, a bancária e sindicalista de Juiz de Fora, Lívia Gomes Terra, 41 anos, obteve no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) a condenação por calúnia de engenheiro Renato Henrique Scheidemantel, 53, morador do Rio de Janeiro. Ele foi identificado e apontado no processo como o responsável por divulgar a fake news, que causou sérios transtornos à vida da mulher, inclusive psicológicos.
O engenheiro foi condenado pelo crime contra a honra, agravado pelo fato de ter sido praticado por meio que facilitou a divulgação (redes sociais). Ele recebeu pena de dez meses e 20 dias de detenção na sentença assinada na última sexta-feira (13) pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio. A pena privativa de liberdade, no entanto, foi substituída por uma restritiva de direitos, que será convertida na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, a ser estipulada pelo juízo da execução.
A Tribuna entrou em contato com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, responsável pela defesa do acusado, para saber se entrará com recurso da decisão judicial. No entanto, o órgão respondeu que, “por ora, não comentará o caso”. Em sua defesa, a Defensoria Pública do Rio chegou a alegar que o réu teve seu perfil em rede social invadido, negando a autoria da postagem que anunciou Lívia como a mulher que supostamente teria passado a faca a Adélio Bispo, momentos antes de ele golpear Bolsonaro durante caminhada pelo Calçadão da Rua Halfeld, no Centro da cidade.
‘Minha vida virou um inferno’
“No dia 8 de setembro (de 2018), dois dias depois do atentado a Bolsonaro, me surpreendi vendo minha cara na internet sendo associada àquele crime. Um desconhecido, alguém que eu não fazia ideia de quem era, simplesmente pegou meu perfil de Facebook e disse que eu era uma mulher que estava no meio daquela multidão e que havia passado a faca para o Adelio. Minha vida virou um inferno a partir dali”, relembrou Lívia, em depoimento à Tribuna nesta segunda-feira (18).
Desde aquela ação virtual, ela passou a receber inúmeras ameaças vindas do país todo, via redes sociais. “Em pouco tempo, essa publicação já tinha viralizado e se transformado em outras. Virou até corrente de WhatsApp na época, com dados mais profundos, dizendo quem eu era, meu nome todo, que minha família era de Chácara, que eu trabalhava na Caixa Econômica e era diretora do Sindicato e da Federação dos Bancários.”
Na ocasião, Lívia já era funcionária da Caixa e diretora de Bancos Públicos do Sindicato dos Bancários, entidade da qual é vice-presidente atualmente. Além disso, ela era e permanece secretária de Políticas Sociais da Federação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro de Minas Gerais (Fetrafi/MG). “Esse texto, que circulou muito no WhatsApp, dizia até que o Sindicato dos Bancários é que estava pagando os advogados do Adélio. Tomou uma proporção bem grande. No sindicato, o clima ficou bem difícil, e foi preciso colocar segurança na porta por alguns dias.”
Com sua vida pessoal e profissional exposta em meio a fake news e ameaças, a bancária não saiu de casa sozinha durante cerca de dois meses. “Eu só podia sair acompanhada porque o risco na rua existia. Estávamos vivendo um momento de campanha política, difícil, com muita hostilidade. E eu, como dirigente sindical, como militante que sou _ sempre estive envolvida nas campanhas políticas sim _ fiquei impedida de ter minha vida normal por conta de tantas ameaças que eu vinha sofrendo.”
Lívia enfrentava constrangimentos. “As pessoas olhavam, me reconheciam pelas fotos do Facebook, falavam atrocidades.” Segundo ela, a foto que teria dado origem à fake news com seu nome era de uma mulher de cabelo comprido, enquanto o dela estava curto. “O cabelo era escuro igual ao meu, ela tinha a pele clara como a minha, e usava um óculos Ray-Ban. A única coisa que nos associava é vendida em qualquer camelô.”
No decorrer do processo, Lívia entendeu que a foto original teria sido colocada em site de busca na internet, supostamente chegando até ela por algumas coincidências e por interesses de quem propagou a mentira. “Eu, militante de esquerda, com perfil no Facebook que, na época, chamava ‘Lívia Lula Terra’. Não tiveram dúvidas de que seria um perfil que eles gostariam muito que tivesse envolvido naquele atentado. Irresponsavelmente, sem terem certeza de nada, o meu nome foi envolvido. Mas eu consegui encontrá-lo e processá-lo.”
Durante o processo, a diretora sindical não pensou que estivesse acusando alguém. “A sensação é de que estava me defendendo dessa acusação. Era um crime de repercussão nacional, que vai entrar para a história. Não fui arrolada em momento algum como suspeita de ter participado, mas eu mesma procurei a Polícia Federal para prestar esclarecimentos que, junto com essas fake news, constam no inquérito oficial. No futuro, quando as pessoas forem estudar esse momento, o meu nome vai estar lá, e isso não é fácil. Eu precisava dessa sentença para me defender. É a prova que eu tenho de que sim, eu sou inocente.”
Bancária desenvolve transtorno de estresse pós-traumático
Todo o transtorno causado pela fake news provocou consequências não apenas superficiais, mas também profundas à bancária Lívia Terra. “Acabei desenvolvendo transtorno de estresse pós-traumático. Esses últimos três anos foram muito difíceis. Isso afetou totalmente a minha vida. Até a pandemia, tinha pânico de sair de casa, eu só conseguia sair para trabalhar, assim mesmo depois de ter crises horrorosas, vomitar de nervoso, sem contar as faltas de ar, tremores e tudo que o pânico traz e as crises de ansiedade também. Não era todo dia que eu conseguia ir trabalhar, mas preferia manter a mente ocupada para não piorar (…) Tudo o que foi causado gera esse desespero. É inexplicável. Acho que só quem viveu o que eu vivi consegue, de fato, saber o que passei.”
Em um dos momentos mais pesados, a diretora sindical precisou recorrer à emergência de uma clínica psiquiátrica. “Sofro as consequências até hoje. Ainda sou dependente de antidepressivos e de ansiolíticos. Ainda luto contra o adoecimento que esse processo todo me causou.”
‘É muito importante saberem que essas práticas têm consequências sim’, diz advogado
O advogado Thiago Almeida, que atuou na defesa de Lívia Terra, lembra que o autor da fake news foi identificado em outro estado. “O marco zero da disseminação é esse morador do Rio de Janeiro, e nós entramos com a ação penal contra ele. “Obtivemos vitória na sexta-feira, e houve condenação penal desse autor no Rio por crime de calúnia. Isso é muito simbólico, porque estamos vivendo um ano chave, com o primeiro ciclo de eleições presidenciais, desde que esse fato aconteceu. É muito importante saberem que essas práticas (de fake news) têm consequências sim e que as pessoas saem condenadas”, complementou Thiago.
Lívia também acredita que o momento da sentença foi propício, no qual esses casos, possivelmente, vão piorar com a disputa. “Isso já vem de um tempo, mas se agrava cada vez mais: As pessoas acham que a internet é uma terra sem lei, que podem, simplesmente, sentar atrás de um computador e falar o que quiserem, inclusive dos outros. Não pensam no mal que estão fazendo. Acho que esse homem não sabia o dano que causou na minha vida.” Nesse sentido, para ela, a Justiça foi educativa. “Essa sentença mostra que a internet não é terra sem lei, que quando sentamos atrás de um computador precisamos ter responsabilidade com o que vamos postar.”
Sentença
Em sua sentença, o juiz Flávio Itabaiana destacou: “É imprescindível fazer menção que o uso contínuo e nocivo das redes sociais não pode servir de desculpa para a prática de crimes contra a honra (aliás, tais delitos têm crescido exponencialmente nos últimos anos), eis que os aplicativos e sites de internet não se constituem em ‘terras sem lei’, integrando nosso ordenamento jurídico, cumprindo ressaltar que tais veículos ‘on-line’ possuem alta capacidade destrutiva da dignidade e honra pessoal quando utilizados de forma criminosa e aumentam consideravelmente o alcance das ofensas proferidas.
O magistrado também pontuou: “Impende salientar que não há que se falar em erro de tipo escusável na conduta daquele que, como engenheiro, possuía plena capacidade para distinguir e evitar a falsa percepção da realidade acerca dos elementos constitutivos do tipo penal em comento, agindo com a nítida vontade de obter um resultado determinado, vale dizer, de caluniar.”