Imagine sofrer de uma doença crônica, que exige tratamento ao custo de R$ 54 mil mensais para manter sua qualidade básica de vida, ganhar na Justiça o direito ao medicamento e continuar sem recebê-lo do Estado ou Município. Essa é a luta enfrentada pelo técnico em segurança do trabalho Carlos Ricardo Sant’Anna, 56 anos, que há dois anos descobriu ter neuropatia motora multifocal. Morador do Bairro Dom Bosco, na Cidade Alta, em Juiz de Fora, ele percebe, dia a dia, aumentarem suas dificuldades para realizar tarefas rotineiras, como se alimentar e tomar banho. “Comecei sentindo espasmos musculares e hoje já agravou para perda de força nos braços e nas mãos. Perdi 15 quilos nesses dois anos e estou com dificuldade respiratória. Qualquer coisinha que eu faço parece que corri uns dois quilômetros”, conta Carlos à Tribuna, durante uma conversa breve ao telefone, para não prejudicar ainda mais sua saúde debilitada.
Para tentar amenizar a longa espera e o sofrimento do pai, que percebe sistematicamente a piora dos sintomas sem o remédio prescrito (imunoglobulina humana), os filhos de Carlos organizaram uma vaquinha on-line pelo link http://vaka.me/1746834. A meta é arrecadar a quantia referente às 28 doses necessárias para o tratamento durante um mês, enquanto o imbróglio judicial não desembaraça. “O medicamento desta doença é de responsabilidade do SUS, pois é muito caro, custa em média R$ 54 mil por mês. E não temos condições de comprar e manter este tratamento. Meu pai já ganhou na Justiça o direito ao medicamento, porém, nunca chega. Já estamos nesta briga há um ano e sete meses”, diz o texto da campanha.
Ainda conforme os filhos, que fizeram o apelo, apesar de a Justiça ter mandado bloquear verbas do Estado e do Município para a compra, não haveria valor disponível em conta para ser retido. “Meu pai está piorando muito, já perdeu vários movimentos do corpo pela falta do medicamento, que é direito dele e dever do Estado fornecê-lo. Já fizemos tudo o que podia ser feito dentro da lei, mas ainda assim eles não enviam. Não sabemos mais o que fazer e, por isso, decidimos pedir ajuda.” Além da vaquinha, quem quiser contribuir pode fazer o depósito direto para Carlos Ricardo Sant’anna, pela conta dele no Banco Itaú (Agência 9169 cc 54818-8) ou por PIX (CPF 777.606.627-34).
‘Estamos vendo a vida do meu pai indo embora’
Um relatório médico comprova que o técnico em segurança do trabalho Carlos Ricardo Sant’Anna faz acompanhamento neuromuscular desde março de 2019 e que precisa receber imunoglobulina humana para tratamento do quadro por tempo indeterminado. Caso contrário, poderia sofrer sequelas motoras irreversíveis. Um dos três filhos de Carlos, o conferente Fabiano da Rocha Santa’Anna, de 34 anos, disse que, logo após a descoberta do custo da terapia, a Justiça foi acionada. “Demorou seis meses para conseguirmos 22 doses, sendo que seriam necessárias 28 para um mês. Depois de três meses é que vieram as outras seis. Isso foi há mais de um ano. Ou seja, em dois anos, ele tomou o equivalente ao necessário em um mês. Agora ganhamos de novo em terceira instância mais três aplicações de 28 doses, mas ainda não recebemos.”
Mas Fabiano só tem uma certeza: não vai desistir da luta. “Fomos apelando para todos os recursos e, judicialmente, não temos mais o que fazer. O sentimento é de frustração, parece que o sistema foi criado para neutralizar e fazer desistir. Mas vamos até o fim, tocando nossa vida, atividades e fazeres, enquanto brigamos por um direito. Estado e Município são muito bons para cobrar, mas na hora de arcarem com o dever, que é promover a saúde, simplesmente ignoram.”
Foi depois de se deparar com o aparente descaso que a família de Carlos decidiu, há menos de um mês, criar a vaquinha on-line. “Literalmente estamos vendo a vida do meu pai indo embora. Ele tem quase 1,80m e está com 55kg, muito abaixo do peso. O médico até o proibiu de falar, por causa da dificuldade para respirar, que atrapalha até nas atividades básicas. Já que o remédio não sai, vamos ver se conseguimos ajuda para ele por um mês. O objetivo é ganhar tempo, porque é um tratamento muito caro, que custa mais de R$ 600 mil por ano”, relata Fabiano.
Questionado sobre como foi ver o agravamento do quadro de saúde do pai em meio à pandemia do coronavírus, o primogênito de Carlos disparou: “A grande questão não foi o medo da Covid em si. Mas toda morosidade virou culpa da pandemia, sendo que já estamos nesta briga há dois anos.”
A expectativa de Fabiano e de seus familiares é que seu pai recupere ao menos um pouco da disposição que tinha quando iam à academia ou à praia juntos. “Ele sempre foi uma pessoa muita ativa, envolvido com atividades esportivas, mas hoje não pode fazer mais nada”, lamenta. O temor é que não só a saúde física de Carlos fique prejudicada, mas também a mental. “Ele fala que é horrível ficar só dentro de casa. Uma simples caminhada, que era algo irrelevante, se tornou difícil.”
Até o sono do técnico em segurança do trabalho não é mais o mesmo. “Com o problema respiratório, a boca fica muito seca e, quando vai dormir, piora. A cada meia hora, 40 minutos, acorda para ingerir um pouco de água. O sono picado também interfere na recuperação e na parte muscular, contribuindo para a perda de peso.” Para tentar repor a energia do pai, ele tem investido em alimentos líquidos e calóricos, como açaí.
Município alega dificuldade para compra de imunoglobulina
Procurada pela Tribuna, a assessoria da Secretaria Municipal de Saúde disse que o Município realizou, desde maio de 2018, sete processos licitatórios, mas não obteve sucesso em contratar fornecedor do medicamento imunoglobulina humana 5mg. “Está para ser marcada a sessão de uma nova licitação, relativa ao processo nº 0145/2021, pregão eletrônico nº 02/2021.”
Ainda conforme a pasta, diante da urgência e da necessidade de cumprir a ordem judicial, em ação compartilhada com o Estado de Minas Gerais, a Secretaria de Saúde garante ter enviado, reiteradamente, pedidos de cotações para potenciais fornecedores para realizar a aquisição emergencial por dispensa de licitação. Em 11 de janeiro deste ano, a Prefeitura recebeu de uma empresa a seguinte resposta: “Na presente data não reunimos condições de assumir novos compromissos além dos contratos que já se encontram firmados com o Ministério da Saúde, além de privados.” Já outra empresa, informou, segundo a pasta: “Não temos o produto em estoque para atender. Devido à pandemia houve uma queda na produção deste produto (por se tratar de um hemoderivado) pois dependem da coleta de sangue”.
A secretaria alega, ainda, que a dificuldade na aquisição do medicamento não é exclusiva. “Há desabastecimento em outros estados e municípios do país. Assim, reforçamos nosso compromisso e respeito com os cidadãos que necessitam do medicamento imunoglobulina humana, ao passo em que buscaremos incessantemente concluir a contração de um novo fornecedor para a Secretaria de Saúde.”
Estado fará licitação no final do mês
A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) informou que “o último processo de compra do item imunoglobulina humana endovenosa 5g resultou deserto, inviabilizando a compra”. A SES reforça que os trâmites para um novo processo de aquisição do medicamento já estão em andamento, com abertura da próxima licitação programada para o final de fevereiro. “A secretaria tem adotado todas as posturas viáveis ao cumprimento das decisões judiciais da melhor forma, dentro dos ditames e princípios norteadores da administração pública.”