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Retirar os jovens do crime ‘enquanto é tempo’

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“E o que você sonha para o seu futuro?” Essa é a pergunta da reportagem ao jovem F., atualmente com 19 anos. “Eu quero me formar em Direito e ser juiz”, responde o jovem, que parou seus estudos na sexta série do ensino fundamental e tem um longo caminho a percorrer até entrar na sonhada faculdade, mas força de vontade não lhe falta. Ele é um dos 184 adolescentes que passaram pelo projeto “Além da Culpa: Justiça Restaurativa para Adolescentes”, que aposta em um modelo de solução de conflitos que prima pela voluntariedade, sensibilização e senso de responsabilidade na escuta das vítimas e dos ofensores. A iniciativa é polêmica, mas já colhe resultados positivos em Juiz de Fora, onde foi implantada em 2015, no Brasil e outros países. Embora não seja sua meta, como consequência, a Justiça Restaurativa pode contribuir para desafogar processos na Justiça.

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Em sua quinta reportagem, a série “Vidas perdidas – um raio X dos homicídios em JF”, a Tribuna aborda como a Justiça Restaurativa pode apontar caminhos para retirar jovens da criminalidade “enquanto é tempo”, antes que sejam vítimas ou autores de delitos mais graves, como homicídios e tentativas de assassinatos, uma vez que o modelo de sistema prisional e socioeducativo atual ainda não funciona de forma eficiente no que diz respeito à ressocialização. As estatísticas pontuam que jovens com até 25 anos de idade são a maioria das vítimas de morte violenta. Segundo a Polícia Militar, a maior parte das pessoas assassinadas em 2017, na cidade, foi identificada como suspeita em 825 delitos cadastrados nos Registros de Evento de Defesa Social (Reds). Neste contexto, a Justiça Restaurativa surge como uma possível via para minimizar a reincidência criminal que, muitas vezes, culmina em homicídios. Utilizando a metodologia circular, as partes – vítimas, ofensores, apoiadores, membros da comunidade e demais pessoas afetadas pelo conflito – são colocadas frente à frente, para que possam dialogar e conjuntamente buscarem a restauração do conflito. A vítima pode falar sobre como sua vida foi impactada, e o ofensor pode explicar os motivos que o levaram à infração.

No caso de F., o processo restaurativo funcionou como um divisor. Ele perdeu a mãe quando tinha 4 anos e passou a vida em casas de acolhimento. Na última instituição em que morou teve uma desavença com outro adolescente, resultando em agressão, fato que resultou em um processo na Vara da Infância e Juventude. Ele passou quase um ano internado no Centro Socioeducativo de Juiz de Fora, que atualmente se encontra superlotado e tem um histórico de fuga, agressões entre internos e contra servidores e até caso de morte. Há cerca de oito meses, F. deixou a unidade depois de participar do projeto “Além da Culpa”, desenvolvido pela Defensoria Pública da Vara da Infância e Juventude do município em parceria com o Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais (NEPCrim), da Faculdade de Direito da UFJF, e que se tornou referência em Minas Gerais, desde 2015, em práticas restaurativas.

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‘Estou me ressocializando para viver aqui fora’

“Quando a gente fica muito tempo lá, perde a noção das coisas. Ficamos sem saber como a sociedade vai nos aceitar. Agora, estou me ressocializando para viver aqui fora”, afirma o jovem de corpo franzino, fala tranquila e que faz questão de usar boné. Segundo ele, lidar com os estigmas é a parte mais difícil para quem busca um lugar ao sol depois de ter conflito com a lei. Sem família, F. mora sozinho numa casa de aluguel. Atualmente, está em busca de emprego para que possa arcar com os custos de manutenção de seu lar. “Várias pessoas ficam sabendo que passei por lá, e fica mais difícil arrumar oportunidade para trabalhar.” Apesar das dificuldades, o rapaz está cheio de esperança e afirma: “Passar pela Justiça Restaurativa me ajudou muito, pois funcionou como se fosse um empurrão para a vida.”

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No período de março de 2015 a setembro de 2016, foram remetidos à Central de Justiça Restaurativa, implementada pela Defensoria Pública da Vara da Infância e Juventude de Juiz de Fora, 99 processos de verificação de atos infracionais e 85 processos relacionados à execução de medida socioeducativa e reinserção familiar, totalizando 184 adolescentes beneficiados diretamente pelo projeto, que também alcança as vítimas, os familiares e a comunidade. “Todo mundo pensa que quem passou pelo Socioeducativo é marginal, mas eu não me sinto e também não me vejo assim. É preciso muita força de vontade. Temos que aceitar as dicas, as orientações que recebemos ao longo do processo, eu quis e quero mudar”, sentencia F. com ânimo de continuar no caminho que escolheu.

Negros, pardos e com baixa escolaridade são a maioria

Conforme os dados da Central, levantados pelo NEPCrim, as intervenções realizadas atingiram um total de 652 pessoas nos procedimentos de apuração de ato infracional e 595 pessoas nos procedimentos de execução de medidas e reinserção familiar, totalizando 1.247 beneficiários diretamente afetados pelas ações restaurativas.

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Dos procedimentos realizados verificou-se, seguindo a tendência nacional, que a maioria dos adolescentes acusados ou condenados pela prática de ato infracional tem entre 15 e 17 anos, sendo o maior contingente do sexo masculino. Outro aspecto importante e que confirma a tendência nacional é o fato de a maior parte desses adolescentes ser negra ou parda, com baixa escolaridade. A maioria deles já estaria na idade de conclusão do ensino médio ou até mesmo com o ensino médio completo, mas ainda possuem o ensino fundamental incompleto (ver quadro). Em comum, eles ainda têm trajetórias de precariedade e vulnerabilidade social. Muitos com histórico de situação de rua e de pais em situação de rua, o que confirma o caráter seletivo do processo de criminalização e exclusão social que afeta a juventude popular brasileira. Em Juiz de Fora, a Central de Justiça Restaurativa atende adolescentes também de toda a região, mas, segundo as estatísticas, a grande concentração entre o grupo residente na cidade vem dos bairros Vila Olavo Costa e Filgueiras, além de alguns da Zona Norte.

No município, a metodologia predominantemente utilizada é o círculo restaurativo. Os processos chegam à Vara da Infância e Juventude e, a partir daí, o juiz responsável, junto com o promotor de justiça e o defensor, avalia a pertinência e possibilidade de encaminhamento para a Central Restaurativa. Sendo identificada a necessidade, o processo passa por três fases. A primeira é o pré-círculo, quando a equipe, composta de servidores e estagiários da Defensoria Pública e professores e estagiários do NEPCrim, faz contato com todas as partes envolvidas no ato infracional, para convidá-las a participarem do processo restaurativo.

Adesão espontânea

Um dos princípios da Justiça Restaurativa é que haja a adesão espontânea das partes, para em seguida ser marcado o círculo restaurativo, que é a segunda fase. Dele, participam o facilitador e os estagiários que são cofacilitadores, vítima, suposto ofensor (porque nada ainda foi provado), os apoiadores indicados pelas partes e demais pessoas afetadas pelo conflito e que possam acrescentar na discussão.

Muitas vezes, é necessário mais de um círculo para se chegar a um entendimento. Realizado o círculo, são formuladas as propostas restaurativas e encaminhadas ao juiz, que vai ouvir o Ministério Público e a defesa para decidir sobre a extinção do ato. Se verificada a imposição de medida socioeducativa, será considerado em favor do adolescente acusado a participação no processo restaurativo. Depois disso, passados cerca de dois ou três meses, volta-se a fazer contato com as partes para o pós-círculo (3ª fase). Neste momento, verifica-se se houve novas agressões e conflitos, se houve reincidência e se os acordos restaurativos foram cumpridos.

“Buscamos a resolução do conflito com profundidade, o que nunca se dá numa audiência que é marcada por um rito formal, impessoal, célere, em que as partes não podem expor sua versão e o seu sentimento. No círculo restaurativo é dada possibilidade de tanto a vítima quanto o ofensor terem um espaço de fala, para que possam trazer à tona a sua visão do que ocorreu”, destaca a professora da Faculdade de Direito da UFJF, Éllen Rodrigues, uma das coordenadoras do projeto “Além da Culpa”.

Como ela pontua, pesquisas criminológicas demonstram que, ao verificar os danos causados e ao escutar da vítima e de seus familiares os impactos provocados por sua ação, o ofensor tende a se sentir mais inclinado à responsabilização. “Isso é mais positivo para a prevenção de novos delitos e também contribui no desejo de reparação dos danos causados pela ação do ofensor, quando possível, pois há situação em que essa reparação direta não é possível, como num caso de homicídio. Mas, mesmo nos casos de homicídios, os procedimentos restaurativos vêm se mostrando eficientes no sentido de prevenção a vinganças, principalmente em se tratando de rivalidades entre adolescentes de bairros opostos”, ressalta Éllen.

A Defensora Especializada da Infância e Juventude, Maria Aparecida Rocha de Paiva, que coordena o “Além da Culpa” por parte da Defensoria Pública, assinala que a Justiça Restaurativa traz vantagens para ambas as partes envolvidas no processo. “Acredito que os adolescentes têm oportunidade de refletir sobre o impacto que sua ação causou no outro, podendo se responsabilizar, e a vítima tem a oportunidade de se reparar emocionalmente e até perdoar. Todos saem contemplados com o plano de ação, pois são soluções que as partes entram em acordo para solução do conflito.”

Medidas em meio fechado são as que têm menor êxito

As respostas que o Estado brasileiro tem para o adolescente autor de ato infracional são as medidas socioeducativas, que são prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, advertência e reparação do dano. Todas elas são medidas em meio aberto. Mas ainda há a semiliberdade e a internação, que são no meio fechado. Para que sejam empregadas, deve-se garantir ao adolescente o direito ao contraditório e à ampla defesa e, caso confirmada a infração, elas são aplicadas na medida da culpabilidade do autor. Verificar o quanto essas medidas que envolvem restrição e privação da liberdade são capazes de transformar o adolescente é a questão que norteia pesquisas desenvolvidas no Brasil no que diz respeito à justiça juvenil.

De acordo com o professora Éllen Rodrigues, é possível observar que as medidas em meio livre, principalmente a de liberdade assistida e de prestação de serviço à comunidade, aliadas aos programas de Justiça Restaurativa, são as que têm maior resultado na transformação do adolescente, no que diz respeito à não reincidência. “Ao contrário, as medidas em meio fechado, de internação ou semiliberdade são as que têm o menor êxito. Isso demonstra que a privação e restrição de liberdade são os piores encaminhamentos nos casos de prática de atos infracionais, o que vem sendo comprovado há mais de 50 anos em pesquisas em diferentes países do mundo e no Brasil. Sem falar que o modelo tradicional, que é o retributivo, não dá nenhum tipo de retorno à vítima ou à sociedade”, enfatiza Éllen, que acrescenta: “É um mito pensar que a Justiça Restaurativa pode contribuir para descongestionar as pautas da Justiça. Esse não é o objetivo dela, pode ser um efeito. Pode acontecer que, através da Justiça Restaurativa, os casos sejam resolvidos de forma exitosa e implique na extinção do feito.”

“No círculo restaurativo é dada possibilidade de tanto a vítima quanto o ofensor terem um espaço de fala, para que possam trazer à tona a sua visão do que ocorreu”, Éllen Rodrigues, professora da UFJF e uma das coordenadoras do projeto “Além da Culpa”

Na Alemanha, por exemplo, mais de 80% dos casos envolvendo adolescentes são encaminhados aos programas de Justiça Restaurativa. “No Brasil, isso acontece de forma inversa, pois mais de 90% dos casos são encaminhados aos programas de privação e restrição de liberdade. Enquanto lá houve queda de mais de 50% nos índices de delinqüência, no Brasil não há o mesmo avanço. Embora os dados oficiais, disponíveis nos levantamentos anuais do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), comprovem que, no Brasil, ao contrário do que muitas vezes é propagado, vem ocorrendo, desde 2010, um recuo dos crimes violentos praticados por adolescentes, o que deveria significar também a redução das medidas de internação, mas não é isso que ocorre. Nesse sentido, é importante refletir, pois se quisermos ter outras respostas, temos que fazer outras escolhas, e a Justiça restaurativa é uma aposta nessas novas possibilidades”, assevera a professora.

A ideia dos coordenadores do “Além da Culpa” é levá-lo para as escolas em 2018, com o objetivo de ser desenvolvido um trabalho preventivo com apoio da Polícia Militar e de outras instituições. O projeto também faz encaminhamentos dos adolescentes para assistência social, a fim de viabilizar estudo e trabalho. Todavia, carece de instituições e empresas que queiram abrir suas portas. Os interessados em contribuir com a proposta devem procurar NEPCrim, na Faculdade de Direito, no Campus da UFJF, ou a Vara da Infância e Juventude, na Avenida Brasil 1.000, terceiro andar, Bairro Poço Rico.

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