As mortes violentas em Juiz de Fora chegaram a 65 no ano passado ou 27,7% a menos do que as 90 contabilizadas em 2018, alcançando o menor patamar dos últimos oito anos, segundo levantamento da Tribuna. As estatísticas também levam em conta ocorrências de latrocínio (roubo seguido de morte), além dos próprios homicídios, inclusive os óbitos ocorridos nos hospitais em decorrência dos crimes. Apesar da queda significativa pelo segundo ano consecutivo – de 2017 para 2018 o recuo foi de 35,7% -, casos como o da professora Fabiana Filipino Coelho, 44 anos, baleada no abdômen na manhã do dia 20 de novembro, quando fazia compras na Rua Marechal Deodoro, no Centro, não deixam esquecer que a violência ainda pode estar presente a qualquer hora e em todos os lugares. Só nos últimos dez anos, pelo menos 1.063 vidas foram perdidas na cidade, a maior parte delas para o tráfico de drogas, que continua ligado de alguma forma à maioria dos assassinatos. Mas a diminuição das brigas entre gangues e das disputas por pontos de venda de entorpecentes, que refletiram diretamente nos números, fizeram saltar aos olhos ações criminosas motivadas por relações passionais e/ou familiares, assim como latrocínios, como o do motorista de aplicativo Edson Fernandes Carvalho, 21, morto com tiro dentro do carro que trabalhava em tentativa de assalto no dia 8 de novembro no Bairro Santos Anjos, Zona Sudeste. No dia 26 do mesmo mês, o comerciante Franklin Orru Cerqueira, 53, também foi alvejado em roubo tentado à sua lanchonete na Rua Pedro Scapin, no São Mateus, Zona Sul. Atingido no maxilar, ele ficou internado, mas acabou morrendo dez dias depois.
Após a explosão de homicídios observada desde 2012 e só reduzida a partir de 2018, o município conseguiu chegar próximo ao índice aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera epidêmico indicativos superiores a dez para cada cem mil pessoas. Enquanto a taxa era de 24,3 mortes para cada cem mil habitantes em 2017, no ano passado, caiu para 11,42, com base na última estimativa populacional do IBGE (568.873).
“Estamos voltando ao patamar do início da década”, observa o titular da Delegacia Especializada de Homicídios, Rodrigo Rolli, disparando em seguida: “O número de armas de fogo não diminuiu, as facilidades para entrada no Brasil continuam as mesmas. Pelo contrário, o armamento está cada vez mais acessível, apesar das inúmeras apreensões.” Para Rolli, ainda não é possível prever uma nova queda em 2020, mas ele pondera que a consistência dos inquéritos, que passaram a contar com grande participação de testemunhas veladas nos últimos dois anos, tem sido um fator preponderante para a redução, assim como os julgamentos mais céleres, muitos deles com grandes condenações, realizados pelo Tribunal do Júri. “Se conseguirmos manter o número já é uma vitória.” Desde que assumiu a Especializada, em 2014, o delegado soma diminuição de 57,5% nos homicídios consumados. “A principal ferramenta que a delegacia conta é a população. Com a credibilidade que conseguimos, as informações chegam.”
80% morreram por arma de fogo
Rolli não cita as armas de fogo por acaso, pois as mesmas continuam sendo o meio mais utilizado para matar: das 65 vítimas de crimes violentos fatais em 2019, 52 foram assassinadas a tiros, correspondendo a 80% do total. Facas ou outros instrumentos cortantes aparecem em apenas cinco casos, enquanto agressões surgem em seis. Entre os 59 homens e seis mulheres mortos, quase a metade é formada por jovens de até 25 anos, mas nenhum adolescente está entre as vítimas, ao contrário de períodos anteriores. Entretanto, 16 menores de idade tiveram pedidos de acautelamento por suspeita de participação em alguns dos 60 inquéritos de homicídios instaurados no último ano pela delegacia, 95% deles devidamente apurados. Contra adultos, houve 98 solicitações à Justiça de mandados de prisão, somando 114 detenções no último ano em decorrência das investigações dos crimes contra a vida que resultaram em óbitos. Em relação às tentativas de assassinato, o delegado aponta redução mais tímida, de 4,3% frente a 2018, caindo de 93 para 89. Já no período entre 2015 e 2019 a queda da modalidade foi bem maior, de 47,3%.
Operações em áreas de criminalidade
A Polícia Militar garante continuar atuando diretamente para coibir as mortes violentas, sobretudo por meio das Patrulhas de Prevenção a Homicídios (PPHs), presentes no 2º e no 27º batalhões. “A equipe PPH trabalha especificamente na análise quantitativa e qualitativa dos delitos, identificando todos os agentes e circunstâncias envolvidas, ou seja: locais de maiores incidências, identificação dos autores e suspeitos.” Ainda conforme a assessoria da corporação, em novembro, foi realizado um curso de capacitação para aproximadamente 40 militares de toda a 4ª Região. “Para a redução criminal e ação de repressão qualificada, são realizadas operações policiais em áreas de criminalidade violenta, cumprimento de mandados de busca e apreensão, prisão de autores e ações de inteligência de forma integrada com demais órgãos do Sistema de Defesa Social, com vistas à redução de índices criminais, em especial ao crime de homicídio em Juiz de Fora.”
O delegado Rodrigo Rolli avalia que, apesar da equipe da Delegacia Especializada de Homicídios contar apenas com um escrivão, um inspetor e dois investigadores, além do próprio titular, há “total controle das investigações”. “Estamos conseguindo criar uma insegurança entre os próprios autores de homicídios, para que eles tenham temor de praticar crimes acompanhados de outros.” O policial lembra a importância de todo o ciclo e a confiabilidade entre as instituições, incluindo Ministério Público e Poder Judiciário. “É a investigação bem feita aqui que vai gerar a condenação lá. E esta repercute na cadeia.”
Violência se espalha por mais de 40 bairros
Os 65 crimes violentos que resultaram em mortes no ano passado se espalharam por mais de 40 bairros, embora alguns tenham concentrado mais casos. A Vila Olavo Costa, na Zona Sudeste, aparece no topo da lista, com seis assassinatos, reforçando, mais uma vez, que a vulnerabilidade da população, diante de políticas públicas de prevenção historicamente escassas, funcionam como gatilho para o crime. Desde o primeiro semestre de 2018, o bairro conta com o programa estadual de prevenção a homicídios Fica Vivo, voltado para jovens entre 12 e 24 anos, mas os efeitos não foram imediatos. A expectativa do Estado é mudar o cenário de violência, por meio de oficinas de esporte, arte e cultura, além de atendimento psicossocial e encaminhamento para a rede de serviços públicos. Junto com o Mediação de Conflitos, o projeto integra o Centro de Prevenção à Criminalidade (CPC), que funciona no mesmo prédio do Núcleo Travessia. Já do outro lado da cidade, na Zona Norte, a também carente Vila Esperança I foi cenário de três assassinatos em 2019, acompanhada por Benfica, com outros três.
Por região, a Zona Norte é a maior área do município e também a mais violenta, totalizando 18 casos. Em seguida está a Zona Sudeste, com 14, onde destaca-se o Bairro Santo Antônio, com três ocorrências, além da Olavo Costa. A região Sul surge em terceiro no triste ranking, com 12 crimes, impulsionada por um triplo homicídio familiar no Salvaterra. Já a Zona Leste vem logo atrás, com 11 mortes violentas, sendo três delas no Linhares, bairro onde estão as unidades prisionais.
Para o delegado Rodrigo Rolli, um dos homicídios que mais chocou no último ano, além do caso da professora Fabiana Filipino e do motorista de aplicativo Edson Fernandes, foi o de Roseli Franca de Oliveira Silva, 41. Ela foi executada dentro de casa com dois tiros na cabeça e na presença da filha de 10 anos, no dia 23 de fevereiro, no Santo Antônio. “Uma dona de casa inocente, assassinada porque o namorado dela teria supostamente abusado de uma criança que ela tomava conta. O tráfico assumiu as dores e mandou matar o homem. Como não conseguiram, acabaram matando Roseli. Para vingar um suposto abuso sexual, tiraram a vida de uma mãe na frente da filha de 10 anos. Isso me marcou muito.”
Outro caso que chamou a atenção de Rolli foi a morte do coronel reformado do Exército e médico Sebastião Mauro Venturi de Pina, 58, cujo corpo foi encontrado com tiro na cabeça, no dia 6 de dezembro, dentro de um carro no trevo da AMG-3085 com a BR-040, na Barreira do Triunfo, Zona Norte. As investigações conduzidas pela Especializada levaram à prisão da esposa da vítima, 42, como possível mandante, e do ex-sogro dela, 71, como executor. “O caso foi emblemático porque aparentemente era insolúvel”, comenta o delegado. O idoso, que era pai de um ex-marido da mulher, foi encontrado morto na véspera do Natal dentro de uma cela no Ceresp. A unidade prisional instaurou procedimento de investigação interna para apurar administrativamente o ocorrido.
Mais um crime passional com destaque em 2019 foi o feminicídio de Claudia de Paiva Rezende Alves, 47. A moradora do Nova Era ficou desaparecida por mais de cinco meses até seu corpo ser encontrado pela equipe do delegado Rafael Gomes, no dia 10 de dezembro, em uma mata às margens de uma estrada vicinal na Barreira do Triunfo. O ex-marido dela, Jaime Tristão Alves, 41, está preso no Ceresp desde o dia 8 de agosto por suspeita de feminicídio e ocultação de cadáver, já foi denunciado pelo Ministério Público e pronunciado pela Justiça para ir a júri popular. Câmeras de segurança foram fundamentais na investigação, revelando que Claudia havia entrado no carro do acusado após ser vista pela última vez no Nova Era.
Já o assassinato de um possível morador em situação de rua, morto com um tiro no rosto no dia 22 de dezembro ao supostamente pedir dinheiro a um motorista no Mariano Procópio, Zona Nordeste, preocupa o delegado Rodrigo Rolli por se tratar de uma suposta tentativa de assalto que teve como resposta um homicídio. Pela placa do carro, a equipe conseguiu chegar ao suspeito, um comerciante, 52, do Bandeirantes. Em depoimento, ele alegou ter atirado por acreditar que seria roubado. “No caso, a arma era ilegal, mas acho que a população não está preparada para ter porte. Não tem formação cultural e emotiva para isso. É muito mais necessário investir em educação, em políticas sociais e em segurança pública para evitar que o crime aconteça. E não combatê-lo com outro.”
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Quase mil casos aguardam por desfecho
Apesar dos avanços do município nos últimos dois anos na redução das mortes violentas, dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) revelam que 967 homicídios e tentativas de assassinato, a maioria de anos anteriores, ainda estão em fase de inquérito, ou seja, não podem ser levados a julgamento. Com isso, centenas de corpos estão enterrados sem autoria definida, enquanto outros tantos sobreviventes continuam sem ver o desfecho de seus casos. A situação é um alerta, já que a Delegacia de Homicídios chegou a contar com duas equipes durante o período de pico dos assassinatos, mas voltou a ser reduzida diante da queda dos crimes. Questionado sobre o questão, o delegado regional de Juiz de Fora, Armando Avolio Neto, informou ter criado, no primeiro semestre do ano passado, um Núcleo de Acervo Cartorário para cuidar de todos os homicídios antigos. “Estamos dando o devido andamento de acordo com as nossas possibilidades”, pontua, diante do conhecido baixo efetivo da Polícia Civil na cidade.
Enquanto isso, os trabalhos no Tribunal do Júri, responsável pelos crimes contra a vida e não pelos latrocínios, considerados patrimoniais, andam a todo vapor. Só em 2019 ocorreram 88 julgamentos, inclusive o mais longo da história, o caso Matheus Goldoni, que durou quatro dias. Ao todo, 127 pessoas sentaram no banco dos réus, sendo muitos condenados e alguns absolvidos, somando mais de 1.500 anos de pena. Houve júris de assassinatos ocorridos há menos de cinco meses, como o triplo homicídio no Salvaterra de 7 de agosto, julgado no dia 5 de dezembro. O homem, 50, acusado de matar a tiros as próprias tias Maria José de Oliveira, 61, e Maria Cristina de Oliveira Paes, 57, além do companheiro desta última, Walter Paes, 71, foi condenado a 44 anos e seis meses de prisão. Já o caso do filho, 24, acusado de matar o próprio pai, o empresário Waldir Jorge Zampier, 64, no fim de maio, resultou em condenação de 24 anos no dia 22 de outubro.
Para o juiz titular do Tribunal do Júri, Paulo Tristão, que também esteve à frente de 256 audiências no ano passado, a fluidez dos julgamentos tem contribuído para acabar com sensação de impunidade.
“Os júris de casos de repercussão ou não, para a comunidade onde o fato aconteceu, têm sempre muito impacto, inclusive no sistema prisional. Isso tem efeito preventivo.”
O juiz reafirma que a droga está ligada a cerca de 90% dos casos julgados, transformando a vara em uma espécie de “Tribunal do Tráfico”. “São disputas por pontos de venda, entre chefes de bairros rivais ou vingança porque matou o outro. A droga está inserida no contexto, de uma forma ou de outra.”
O magistrado pondera que, mesmo diante da redução de homicídios e do bom trabalho desenvolvido pela Polícia Civil, que enfrenta muitas dificuldades, são necessárias políticas públicas, já que a violência parece estar consolidada em alguns locais. “As ruas e os bairros onde mais ocorrem os crimes se repetem. É necessário um trabalho social junto a crianças e adolescentes, a pessoas que mexem com o tráfico, em termos de Município e Estado. Não está tudo funcionando bem. O Judiciário trabalha na ponta final, colocando os casos em pauta para julgar. A inicial é a prevenção.”
‘Só posso afirmar que o tráfico matou menos’
Atuando diretamente na Vara do Tribunal do Júri, o promotor Hélvio Simões Vidal acompanha com cautela o recuo dos homicídios em Juiz de Fora, demonstrando também preocupação com as tentativas de assassinato, que tiveram queda de apenas 4,3% no último ano, segundo dados da Polícia Civil.
“Houve condenações duríssimas durante o ano de 2019, e eu participei de várias delas. Acho que os julgamentos foram rápidos, muito imediatos, e isso é um fator importante no que diz respeito à resposta da Justiça. Curioso que temos apenas uma Delegacia de Homicídios. Em 2018, tínhamos duas”.
O promotor ressalta que, apesar de todo trabalho desenvolvido pelas instituições, que contribuíram para a diminuição dos índices, as causas desse retorno ao patamar de oito anos atrás ainda não estão explicadas. “Em São Paulo, houve essa redução também muito significativa. A Polícia Militar no Rio de Janeiro acha que devido à ação de inteligência. Estudo de sociólogos da USP, inclusive publicado em livro, diz exatamente o contrário: que foi o PCC (facção criminosa Primeiro Comando da Capital) que mudou a ação do tráfico. Houve uma contraordem do comando do PCC, que controla não só os estabelecimentos penais, como também uma grande parte de criminosos vinculados ao tráfico que estão nas ruas.”
Em Juiz de Fora, o promotor acredita também poder se tratar de “uma estratégia da geopolítica do tráfico”: “Só posso afirmar que o tráfico matou menos. E esses dados não podem ser computados exclusivamente como mérito da ação de segurança pública, muito menos da Justiça, muito menos do Ministério Público.”