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‘Gente que fez a Tribuna’: os blocos de Flávia Lopes

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A dor do outro invade a gente

Flávia Lopes, repórter da Tribuna entre 2004 e 2012

Foram 62 blocos. Quando saí da Tribuna, em março de 2012, recolhi todos eles do escaninho. Com letra quase sempre indecifrável para os outros (e muitas vezes para mim), reuniam boa parte das histórias que ouvi e contei no jornal. A gente escrevia no bloco porque a pauta quase sempre era na rua, olho no olho. E nesses encontros com o outro, aprendi um tanto sobre as diferentes gentes, percorrendo a extensão da cidade e ouvindo todo o emaranhado de necessidades, dores e alegrias das relações humanas.

Também precisava de bloquinhos porque os telefones da Redação ficavam distantes dos computadores e não existia WhatsApp. Tempo bom. Sempre que estreava bloco novo, colocava meu nome e celular na primeira folha. Uma vez, fui ao banco enquanto fazia enquetes com o fotógrafo Cerezo e esqueci a apuração por lá. Quando cheguei à Redação, me ligaram: “você perdeu seu bloco, amanhã não tem notícia”. Fui correndo buscar. Quando a pauta era na chuva, fazia uma ginástica para segurar a sombrinha e escrever ao mesmo tempo. Mas sempre molhava a folha e a caneta falhava, enquanto ouvia histórias de quem perdeu tudo, calçada de galochas da Redação e com água até o meio das canelas. A dor do outro invade a gente.

Os blocos também viram casarões históricos serem derrubados, como o Colégio Magister. Acompanharam todo o processo de conquista do movimento negro para a implantação das cotas na UFJF. Conheceram cidades vizinhas e foram até Stuttgart, na Alemanha. Também traziam registros de lugares que vendiam carne de cavalo como se fosse bovina. Ouviram promessas de empresas que nunca chegaram a se instalar em Juiz de Fora, empregos que jamais foram criados e projetos megalômanos, como construir um veículo leve sobre trilhos em plena Avenida Rio Branco e transformar a cidade em um grande polo automobilístico do país.

As páginas reuniam relatos de artistas, crianças, foliões, até presidenta. E acompanharam manifestações de estudantes nas ruas contra o aumento da passagem. Isso bem antes de 2013. Quando os temas econômicos pareciam girar num looping infinito entre agendas de imposto de renda e vendas de Natal, uma crise mudava as pautas e abordagens. Entre imbróglios envolvendo Expominas, Aeroporto Regional e Mercedes, sobrevivemos, não sem muita insistência. Mas recuperávamos o fôlego nas pausas, como as conversas com a turma do canto da Redação, que apelidamos de “baixo clero”, e também no “fumódromo”. Ali era praticamente uma faculdade, que acontecia em um espaço de 3m x 3m, no intervalo entre o telefonema para uma assessoria e a escrita de uma “vida urbana”. Eu não fumava, mas ia com meu café.

Além da vida dos outros, os blocos contavam a minha também. No seu canto, traziam os versos de um colega, que virou companheiro da vida. Algum tempo depois, vieram dois pequenos. Mas isso já não estava naquelas páginas.

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