De tempos em tempos, Rogério Batalha quase deixa para trás a vontade de fazer poesia escrita. O letrista – agora, integrante do time de compositores da Escola de Samba carioca Império Serrano – vai ganhando mais espaço. No entanto, ainda bem, o “ciclo, com a poesia de livro”, não se findou. Ele lançou recentemente “Hérnia” (TextoTerritório, 60 páginas), obra em que reflete sobre a dor. “Dores são sempre arquitetadas em silêncio. uma porrada na pasmaceira. a vida é um enxame no final da tarde. à porta dos desnatados a vida parece um embarque castanho-azul. praieiras canções Caymmi? coisa rara é estar vivo, meu nego. coisa rara é não estar vivo. Haja vista que é viagem e passagem”.
Embora acredite não saber falar sobre seus livros e canções, o autor apresenta-nos “Hérnia”. “Fala sobre os percalços da vida, da invenção, sobre se refazer dos cacos, resistir apesar dos revés, ir para além das unhas arrancadas, reinventar-se sobretudo”, destaca o poeta de Miguel Couto/Rio de Janeiro, confidenciando que, de certa forma, a nova obra nasceu de uma dor real vivida por ele. “Partiu de uma experiência assombrosa que tive com a dor. Há uns dois anos, tive um problema muito sério de hérnia de disco’, uns seis meses de hospitais, de crise intensa, morfina e tudo. Então, foi o princípio, a pedra-de-toque”.
Também autor de “Inventário”, “Cidade fundida”, “Exercícios de nuvens” e “Azul”, publicados pela TextoTerritório, Batalha estreou na literatura em 1998, há pouco mais de 20 anos. “Malícia”, o primeiro livro, teve as bênçãos de Waly Salomão. “Este poeta eu queria que vocês tomassem cuidado!/ Ele é bom e por isso é perigoso!”, sentenciou o escritor, morto no ano de 2003. Contudo, pode-se dizer que a história de Rogério Batalha com as palavras começou bem antes, por volta de seus 15 anos. E a Música Popular Brasileira foi a responsável pelo seu deslumbramento com a escrita. Ouvia Chico Buarque, Caetano Veloso, Cartola, Noel Rosa, entre tantos outros grandes nomes, o que justifica o fato de ele ter se enveredado para a carreira de compositor. Neste bate-papo de hoje, o assunto é a poesia, a que ele escreve para ser lida em seus livros e a que ele escreve para ser cantada.
Marisa Loures – “A vida é um desvio vertebral localizada na região do sonho. uma ruptura exagerada na curvatura dos dissabores (…) dor que é pedra no rim dói muito mas é menos”. A dor física indica que algo está errado dentro do nosso corpo. Nesse trecho, entendo que algo está errado na nossa vida, ela é a própria dor, como você mesmo escreveu, uma dor que é “metáfora de tudo”… Portanto, impossível viver sem ela…
Rogério Batalha – É esse o nosso estranho fardo e baobá, raízes profundas provêm daí…
– Se não há como fugir da dor, se é “desumano não senti-la”, já que entendo que a vida é a própria dor, o que o poeta propõe em “Hérnia”? Como “o leitor, partícipe desta dor, deve percorrer as vértebras todas da invenção e recolher seus cacos até o limite das possibilidades abertas sobre o mundo, para que aprenda a resistir”?
– Desejo/meta: Sagacidade é saber farejar delícias.
– Qual é a função social do escritor hoje e da poesia? Qual é a principal dificuldade do poeta atual?
– Acho que a função é a de sempre, desde sempre, enfim, de antena mesmo, de roubar o fogo para si e para pólis. A dificuldade é a ausência total do mercado e a precariedade que provém disso.
– Quando conversamos em 2014, você disse que era muito tímido e que isso não facilitava a vendagem do seu “peixe”. Falávamos sobre o fato de sua poesia ser reconhecida por nomes de peso da cultura brasileira e, no entanto, seu trabalho, à época, estar em relativo ostracismo. Houve mudanças?
– Quase nada aconteceu para a minha poesia de lá para cá. Na música, algumas alegrias, conquistas, honras, contudo, ainda continuo pouco conhecido, para o grande público.
– Quem era o Rogério Batalha de “Malícia”, seu primeiro livro. E quem é, hoje, o poeta Rogério Batalha, de “Hérnia”? E como você avalia esse novo livro?
– Quero crer que melhor poeta, mais esperto, mais sagaz, porém, ainda em busca de farejar delícias. Sobre o livro, eu prefiro que vocês avaliem, me sinto incapaz disso.
– Você se tornou compositor da Império Serrano e lançou o CD “Hoje o dia raiou mais cedo”, em parceria com Agenor de Oliveira e Mauro Sta Cecília, com participações de Ney Matogrosso, Frejat, Nelson Sargento e Moacyr Luz. Também está gravando um CD de músicas inéditas, em parceria com Moacyr Luz, com participações de Moyseis Marques, João Cavalcante e Humberto Effe, entre outros. O que, hoje, ocupa mais espaço em sua vida, mais te satisfaz e te faz fazer planos? O trabalho com a música ou como escritor?
– Olha, vez por outra acho que meu ciclo, com a poesia de livro, se deu por encerrado. Tenho enveredado cada vez mais para o lance das canções, o que tem me dado mais prazer e ânimo. Tenho feito muitas músicas, lançado CDs, estou disputando o Samba-enredo de 2020, do Império Serrano, entrei para a ala de compositores da escola, acabei de lançar com os meus parceiros “Hoje o dia raiou mais cedo”, prestes a lançar novo CD de inéditas com Moacyr Luz, enfim, navegado mais nas águas das canções.
Sala de Leitura
Sábado, às 10h15, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010).
“Hérnia”
Autor: Rogério Batalha
Editora: TextoTerritório (60 páginas)
Trecho do livro “Hérnia”
Por Rogério Batalha
“A propósito, em tudo há um palco, na dor, todo o teatro. ela é um atlas. articula-se na base do crânio. não é uma poltrona vazia ou tampouco ausência de álcool moeda ou afeto. de modo que ela é um labirinto aceso. ela quando chega dilacera tudo. não é coisa de bicho nem planta. é um rasgo entre as vísceras o parto o salto e a esperança.
é quando uma hérnia se projeta de forma aguda, acentuada. espécie de objeto saído através de uma fissura ou orifício, de uma estrutura antes contida. ela é uma lesão no canto. um vazamento que pressiona o sonho o tempo todo. um incômodo permanente sobre a tinta sobre o mais vulnerável. é estar fora de si por uma unha um cisco encravado na alma. não pode ser mensurada senão pela própria dor. foi isso que ela me disse: sou uma espécie de osteoporose no seu peito.
levo escombros nos olhos. beijos carnívoros. aqui não tem verniz.”