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Cia. Teatrando: uma história escrita com obsessão, amor e dor

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Adryana Ryal organiza a Mostra INventaINCena é organizadora do livro “Cia. Teatrando tecendo histórias no teatro – 3 vezes drama” – Foto de Humberto Araújo

Acompanho a Teatrando há algum tempo e sempre tive a certeza de que a arte que é feita ali nasce de um processo de “Obsessão, amor e dor”. O título de uma das peças de Adryana Ryal me veio à cabeça enquanto tentava,  sozinha, definir o teatro do grupo. Criada em 1990, a companhia tomou novo fôlego e inaugurou o núcleo de investigação teatral a partir de 2007, já sob a direção de Adryana. E, para celebrar a década desse novo rumo, a companhia preparou a realização da Mostra INventaINCena, prevista para o dia 3 de dezembro, a partir das 14h, no Museu Ferroviário. A programação conta com apresentação de onze cenas curtas, mesa de debate com o tema “Construção de cenas: dramaturgia, encenação, preparação”, com participação de convidados aqui da cidade e de fora, e lançamento do livro “Cia. Teatrando tecendo histórias no teatro – 3 vezes drama” (Editora Garcia, 94 páginas), o primeiro de uma trilogia. Antecipadamente, o ingresso é vendido a R$ 15. As reservas são feitas na página do evento no Facebook.

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“Fazer teatro, estar nas artes cênicas ou estar com ela e para ela é uma escolha. Essa escolha vem recheada exatamente desses elementos: um pouco de obsessão, porque, às vezes, a gente fica obcecada pelo trabalho; um pouco de dor, porque nem todos os dias são de alegrias, mas também tem as suas alegrias. Apesar de ser uma arte efêmera, ela mantém o registro dentro da humanidade. É uma arte primitiva, tem o registro histórico na Grécia e vem adentrando esse tempo. E, como você se dispõe a estar no teatro, para o teatro e com ele, esse registro é infinito. A gente trabalha dessa maneira. Os trabalhos são profundos, as pesquisas são profundas, a gente trabalha com o material humano. Nossos casos, nossas dores, nossas angústias e as nossas felicidades estão lá”, conta Adryana, que assina a publicação ao lado do amigo de palco e de vida Tiê Fontoura.

“Cia. Teatrando tecendo histórias no teatro – 3 vezes drama” traz apresentação e processo de criação e produção de três espetáculos do grupo: “Obsessão, amor e dor” e “O mito de Orfeu e Eurídice”, de Adryana Ryal, e “As sementes de aço”, de Tiê Fontoura com colaboração de Rafael Coutinho. Rubricas (anotações para indicar gestos ou movimentos dos atores), fotos de cada montagem e histórico da companhia ocupam as páginas da obra, prefaciada pelo professor do departamento de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora Júlio César Souza de Oliveira.

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“Não há, entre os textos selecionados, uma unidade temática. Entretanto, ao contrário de se tratar de um defeito, essa diversidade se revela como uma característica do próprio trabalho da Companhia Teatrando. Não se observa, na trajetória do grupo, uma recorrência temática ou mesmo estética. A cada novo trabalho, uma proposta peculiar se impõe, conferindo unidade especial à criação. No trabalho seguinte, erigem-se novas alternativas e interesses, que irão redundar em escolhas totalmente novas”, sentencia Oliveira.

“O antigo diretor passava na rua, às vezes, pegando caixa de papelão, madeira para construir cenário, retalho de tecido para confeccionar figurino, e um dia tive a oportunidade de ouvir dele o seguinte: ‘Vocês têm que entender que, mesmo que eu não esteja aqui, que não tenhamos recursos 100%, que não tenhamos um lugar, nós precisamos fazer. As pessoas precisam que a gente faça. A gente precisa que as pessoas precisem que a gente faça para a gente continuar fazendo. Sempre vai ter uma pessoa para te olhar, para te esperar. Para essas pessoas, a gente tem que fazer. Não importa o lugar.’ Essa é a grande resistência. Como continuar fazendo sem ter os recursos? Aí tem a dedicação, o amor, o respeito, a disciplina e tem o querer. E o querer fazer tem que ser despretensioso. Não é ocupar um lugar para ficar se mostrando. É um lugar para se fazer com o outro e para o outro.”

Marisa Loures – O professor da UFJF Júlio César chama a atenção no prefácio para a longevidade da Teatrando. São 27 de existência, sendo dez sob sua direção. Ele destaca que um dos méritos da companhia é resistir mesmo com a escassez de recursos. Como resistir estando no interior, sem ter sede fixa e dinheiro?

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Adryana Ryal – Costumo dizer que o teatro de grupo é necessário para que a vida sociocultural do ser humano continue permanecendo. O Teatrando foi fundado em 1990 pelo Sebastião (Alvim). Como atriz, entrei em 1993. O antigo diretor passava na rua, às vezes, pegando caixa de papelão, madeira para construir cenário, retalho de tecido para confeccionar figurino, e um dia tive a oportunidade de ouvir dele o seguinte: “Vocês têm que entender que, mesmo que eu não esteja aqui, que não tenhamos recursos 100%, que não tenhamos um lugar, nós precisamos fazer. As pessoas precisam que a gente faça. A gente precisa que as pessoas precisem que a gente faça para a gente continuar fazendo. Sempre vai ter uma pessoa para te olhar, para te esperar. Para essas pessoas, a gente tem que fazer. Não importa o lugar.” Essa é a grande resistência. Como continuar fazendo sem ter os recursos? Aí tem a dedicação, o amor, o respeito, a disciplina e tem o querer. E o querer fazer tem que ser despretensioso. Não é ocupar um lugar para ficar se mostrando. É um lugar para se fazer com o outro e para o outro.

Tiê Fontoura, um dos autores de “3 vezes drama”, em cena de “Obsessão, amor e dor” – Foto de Sabrina Chinelato

– O Júlio César também aponta que, nos três espetáculos que estão no livro, não há uma unidade temática. Como é essa diversidade? Quais são os dramas vividos em cada um desses espetáculos?

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– Realmente opto por não ter uma linguagem fixa, por não trabalhar só com comédia, ou só com o infantil. Opto por trabalhar com linguagens teatrais. E esse primeiro livro da trilogia vem falar que o drama envolve a questão do amar, do amor, da amizade, da valorização, a questão do tempo. O primeiro espetáculo é o “Obsessão, amor e dor”. Ele fala sobre as angústias, as frustrações humanas. Fala de como nós estamos oprimidos pelo tempo, e a gente não consegue sair desse ciclo vicioso. O “Obsessão” é muito é um drama romântico e psicológico. As histórias têm uma espécie de fatalidade. O segundo espetáculo é “As sementes de aço.” É ótimo para se tratar do tema resistir. Foi escrito pelo Tiê Fontoura e fala sobre as guerras, sobre as nossas guerras pessoais, sobre nosso campo mental e hostil. Nós vivemos o tempo todo em meios hostis. A rua é hostil, a casa é hostil, mas, muitas vezes, esse campo hostil está na nossa mente. Então, como lidar com isso? E faz uma metáfora muito grande em relação às guerras mundiais. Nós estamos em guerra o tempo todo. E o último é baseado no mito de Orfeu e Eurídice. Pegamos uma ópera que já existe desde 1774, e a gente bebe na fonte dessa ópera para entender um pouco desse mito. Só que a gente queria dar uma visão teatralizada para esse ele, e aí o trabalho foi como dar vida e voz aos deuses, como dar palavras para o amor da Eurídice e do Orfeu. Todo mundo ouve falar que o Orfeu é o maior músico da Grécia antiga, e a Eurídice é uma ninfa da floresta e que eles se apaixonam, mas ninguém sabe como eles se apaixonam. Então, a gente cria essa história de que eles se conhecem no bosque, com aquele amor inocente e latente.

– Você tem um trabalho muito forte com o corpo, e a gente percebe que ele é diretamente refletido na sua escrita…

– Tenho uma paixão absurda por corpo. Estudo o corpo desde a biomecânica, depois passo para a exaustão, para o funcionamento da movimentação do corpo. Isso é indispensável para o aprofundamento do ator na minha concepção de montagem de espetáculo, de processo, de tudo. Acho que, quando o leitor tiver contato com esse livro, a criatividade dele vai ser estimulada o tempo todo. Deixo, inclusive, algumas rubricas pessoais de quando eu estava dirigindo. Isso leva a pessoa para esse campo do corpo. Todos os espetáculos têm um treinamento muito intenso do corpo. O “Sementes”, por exemplo, é baseado no teatro físico, então é um espetáculo ativo o tempo todo. O “Orfeu e Eurídice” tem uma postura que remete aos deuses, mas também tem seres metafísicos, como o Cérbero, o Caronte e as próprias moiras, que não são metafísicas, mas são ancestrais, e a gente dá um corpo para esses seres. Isso é um trabalho muito delicado, algo que foi muito prazeroso para nós.

 

Adryana Ryal e Danyela Silvério em “As sementes de aço” – Foto Divulgação

– O livro traz os textos com as rubricas, fotos, além de uma explicação de todo o processo de criação e montagem dos espetáculos. O objetivo de vocês é que a publicação sirva de fonte de pesquisa para outros grupos?

– Uma coisa que venho falando muito é que, quando a gente leva uma obra para o palco, muitas vezes, o público não consegue ter a dimensão de como foi esse processo, de tudo que se estudou dentro desse processo. A ideia, com esses livros, é deixar umas rubricas e umas análises daquilo que nós fizemos para que a pessoa entenda: “Olha, no período de oito meses eles estudaram isso aqui e fizeram esse trabalho corporal. Aqui ela está indicando que ele tenha tal sentimento.” Então, a pessoa vai dirigindo, vai se tornar um coautor dessa obra, vai se embebedando dessa fonte que a gente está oferecendo. Essa fonte pode ser de inspiração para os grupos que estão surgindo, para aqueles que vão pegar o livro e vão falar: “Olha, ela montou desse jeito e vamos pirar, vamos fazer diferente”. Isso é que é o legal da rubrica. A pessoa vai ver o que foi o processo e criar a partir daquilo, e o leitor vai ler com aquele sentimento indicado.

– Os personagens da Teatrando nascem em cena ou no texto?

– Especificamente nesse livro, a gente faz dois tipos de trabalho. Tem o trabalho de criação a partir da pesquisa do corpo. Então, a gente vai trabalhando o corpo e, de repente, vai surgindo algo desse corpo para encaixar numa personagem ou para surgir uma personagem. Já o “Obsessão”, por exemplo, é baseado em fatos reais. Nós tivemos contato com mulheres e homens que sofreram muito por amar, com pessoas que passaram por situações de racismo e de opressão dentro do amor. Tudo que fui ouvindo foi servindo de fonte e nos levou para uma pesquisa que começou no finalzinho do iluminismo, próximo de quando os negros tinham sido alforriados. Com isso, percebemos que, aquilo que estávamos ouvindo, já vem do tempo. Para teatralizar, em respeito a todas as histórias que tínhamos ouvido, colocamos um romance, um poema lírico. Colocamos formas simbólicas que permitissem que essas histórias, que são dolorosas, tivessem um pouco de poética. É duro falar isso, mas, em “Obsessão”, essas personagens surgiram através de uma dor de realidade. Tivemos contato com o Mada (Mulheres que Amam Demais) e com professores de psicologia, que foram condensando essas personagens e essas linhas foram sendo traçadas. O Tiê Fontoura conta que começou a escrever o “Sementes de aço” dentro do ônibus. Eram 6h da manhã, ele entrou, o ônibus estava extremamente cheio, e aquilo sugeriu para ele um campo de guerra. Dali, ele começou a ter vários dispositivos. A mulher que estava ali sufocada com uma roupa justa ou de um homem que estava cansado segurando a mochila. Tudo aquilo serviu de fonte de inspiração.

 

Adryana e Anderson Ferigate em “O mito de Orfeu e Eurídice”, um dos três espetáculos que estão em “3 vezes drama” – Foto Divulgação

– O tema da mesa de debates é “Construção de cenas: dramaturgia, encenação, preparação”. Qual a importância de se discutir esse assunto?

– Vivemos num mundo muito mecanicista, um tempo rápido, e, às vezes, esse rápido perde a delícia de a gente estar dentro de um teatro ou dentro de uma sala alternativa e passar ali 1h30. A ideia é estimular, principalmente, os nossos artistas. Juiz de Fora é uma cidade que tem mais de 22 grupos de teatro atualmente, é uma cidade que fomenta mais de 300 artistas. Estou falando tendo como base os grupos que eu conheço. Muitos não têm noção de que existem mais de 20 de teatros em Juiz de Fora e de onde eles estão se apresentando. A ideia do Cenas Curtas é movimentar o nome do artista, do dramaturgo, desses artistas que estão se lançando, dos que já estão consagrados, permitindo essa troca com os que estão surgindo, e mostrar as linguagens que estão sendo usadas. São vários meios de teatralizar alguma coisa, desde o tradicional ao contemporâneo. Tem muita gente nova começando e que, às vezes, não consegue um campo e não consegue se inserir num festival de teatro. O Cenas Curtas permite isso. A mesa de debate permite que você mostre seu trabalho para alguém relacionado diretamente às artes cênicas. A ideia é que ela possa ajudar na fomentação da dramaturgia, da encenação, da preparação, da construção da cena curta e também possa dar a oportunidade de lançar novos artistas e de ter esse encontro com os já consagrados. O encontro é o que marca.

– A gente sabe que, infelizmente, o teatro é apresentado para uma plateia restrita. Com a publicação do livro, a expectativa é de que esse público se amplie. O que representa celebrar esses anos todos com um livro?

– Confesso que, publicando esse livro, a gente tem possibilidades de que outras pessoas entendam e vejam que a Teatrando vem resistindo ao longo destes 27 anos, criando, construindo e oferecendo um meio de troca. É uma honra. Agradeço a todos os artistas que estiveram comigo nestes últimos dez anos. São incríveis. Viajei a mais de 15 cidades de Minas, fui para o Rio, São Paulo e Curitiba. Levamos o Teatrando para mais de 30 cidades. Agora, estamos ampliando um pouco mais com a publicação de um livro. Foram mais de 60 prêmios ganhados nestes últimos dez anos. Só temos a agradecer. O livro é uma demonstração de gratidão.

 

Programação da Mostra INventaINCena

Dia 3 de dezembro,  no Museu Ferroviário (Av. Brasil 2.001 – Centro)

14h – Apresentação de cenas curtas

18h – Mesa de debate com o tema “Construção de cenas: dramaturgia, encenação, preparação”

Convidados confirmados:

Júlio César Souza de Oliveira – Professor do curso de Letras da UFJF,

Nadiana Carvalho – Professora da Graduação em Teatro da UFSJ

Gisele Mara – Bailarina, Pesquisadora em Grotowski – Licenciada em Teatro pela UFSJ

Cristiano Fernandes – Ator, diretor da Cia Teatral Fazendo Arte e mestrando em Artes Cênicas pela UFMG

Matheus Way – Licenciado em teatro pela UFSJ e mestrando em artes cênicas  pela UNIRIO

Geraldo Lafaiete – Secretário de Cultura, Curador e Organizador  do Festival de Teatro de Conselheiro Lafaiete.

19h30 – Cena “As sementes de aço”

20h – Lançamento do livro “Cia. Teatrando tecendo histórias no teatro – 3 vezes  drama”

“Cia. Teatrando tecendo histórias no teatro – 3 vezes drama”

Organizadora: Adryana Ryal

Autores: Adryana Ryal e Tiê Fontoura

Editora: Garcia (94 páginas)

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