Na poesia, Adriano Moura tem Arthur Rimbauld, Fernando Pessoa e Manoel de Barros como referências. Na prosa, esse espaço é ocupado pelo português António Lobo Antunes e o moçambicano Mia Couto. Grandes mestres que, certamente, habitam “Todo verso merece um dedo de prosa” (Chiado Editora, 132 páginas). Nesse terceiro livro publicado, Adriano faz, sem dúvida alguma, arte. Experimenta na forma e na temática. Em meio a contos, crônicas e poemas, há escritos sobre amor, solidão, morte, sexo e outros assuntos.
“Poesia para mim é arte. Arte só é possível com experimentação, senão há o risco de ficar condicionado a formas preestabelecidas. Cada tema pede uma forma diferenciada. Deixo que o poema me diga como ele quer nascer: se soneto, trova, verso livre, poesia concreta, ode, elegia”, conta o escritor, que já flertou com o romance, publicando “O julgamento de Lúcifer” (Novo Século 2013). Ele se dedica também, ao teatro. É autor das peças “A matrioska ou o jogo da verdade”, “Meu querido diário” e “Relato de professores”. “A poesia é meu principal norte. É ela que me encaminha para os outros gêneros. Dificilmente, em meus textos em prosa, abandono totalmente a verve poética. O poema é o gênero que permite mais experimentação, linguagem menos translúcida e diferentes formatos”, filosofa ele.
Doutorando do programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, esse escritor de Campos dos Goytacazes/RJ estreou na literatura em 2007 com a obra poética “Liquidificador: poesia para vita mina” (Imprimatur/ 7Letras). Hoje é professor na graduação e na pós-graduação do Instituto Federal Fluminense. Um dos poemas de “Todo verso merece um dedo de prosa”, intitulado “Técnica”, diz que “pra poesia não basta inspiração/ tem de saber olhar as coisas/ pela janela”. Nossa conversa começa justamente por aí. O que será que o poeta vê pela janela e que desperta nele a vontade de criar?
“Nunca acreditei muito em inspiração. Soa sempre como algo metafísico, sobrenatural ou resultado apenas do universo interno do autor. Escrevo mais sobre o que vejo, escuto, toco do que sobre meu mundo interno. Parafraseando o poeta Ferreira Gullar, escrevo sobre o que me causa espanto. Pode ser um malabarista no sinal, uma notícia no jornal, um lugar, a própria linguagem. A realidade que vejo pela janela precisa desencadear em mim a vontade de escavá-la até encontrar nela, por meio da linguagem, material suficiente para o poema. A poesia deve estar nas coisas, não em mim. Nunca gostei muito de textos confessionais demais. A janela é a vida pulsante que nos circunda.”
Marisa Loures – Por que “Todo verso merece um dedo de prosa”?
Adriano Moura – As fronteiras entre verso e prosa foram diluídas e borradas com o advento da poesia moderna, a ponto de, em alguns textos, ser impossível estabelecer a diferença. Sempre transitei entre ambas e tinha a vontade de escrever um livro híbrido, no qual o leitor também pudesse ter acesso às duas formas de composição numa mesma obra, com diferentes gêneros textuais literários.
– “Hoje amanheci de poesia/ mas não soube dizer,/ esperei o verso cair do céu/ mas ele quis continuar nuvem”. Esses são os versos iniciais do poema “Não meta a linguagem”. O que o poeta faz quando os versos não vêm?
– Espera. Rabisca. Escreve. Provoca até que os versos se sintam à vontade para se materializarem na página. É como um relacionamento amoroso. Não pode forçar a barra. Quando isso ocorre, fico lançando as palavras aleatoriamente, para não perder insights. Deixo passar um tempo, retorno a elas e vejo se pararam de se fazer de difíceis e resolveram ceder à sedução do poema.
– Segundo a crítica publicada no “Folha1”, seus versos sofreram transformações desde o lançamento do seu primeiro livro. O que mudou? Essa mudança foi consciente? Você foi atrás dela?
– Houve amadurecimento. Continuo pesquisando e buscando novas formas de me expressar por meio da escrita. Essa busca é incessante para todo escritor que não queira ficar preso aos ditames do mercado que tenta cerceá-lo a formatos e linguagens já aceitos pelos leitores. Diria que parte da mudança foi consciente, a outra se deu no território do inconsciente, como consequência das experiências e experimentos posteriores à primeira publicação.
“Nem tudo que penso politicamente consigo expressar com linguagem literária. Quando isso ocorre, prefiro escrever um artigo de opinião, acho mais honesto comigo e com a literatura.”
– Quando faz sua arte, de certa maneira, o autor já se posiciona politicamente. Posicionar-se em relação ao que acontece em seu tempo é dever do escritor?
– Com certeza. No entanto há várias maneiras de se fazer isso. Porém noto um problema em relação a tal exigência, que é confundir literatura com discurso político ou panfletário. Se o autor coloca o discurso político à frente do literário, corre o risco de escrever um brilhante manifesto, porém esteticamente empobrecido. Às vezes é difícil encontrar esse equilíbrio. “O marido da cidade”, poema de “Todo verso merece um dedo de prosa” é extremamente político. Mas esse aspecto não está explícito, denotado, a linguagem não é referencial, pois se assim fosse a poesia teria dado lugar à argumentação ou à mera exposição de um posicionamento. Nem tudo que penso politicamente consigo expressar com linguagem literária. Quando isso ocorre, prefiro escrever um artigo de opinião, acho mais honesto comigo e com a literatura.
“A literatura não nasceu nos livros, mas nos palcos, nas praças, feiras, salões; não deve ficar limitada à capa e quarta capa de uma obra.”
– Como você coloca sua literatura na rua?
– Quando publiquei meu primeiro livro “Liquidificador: poesia para vita mina” (2007), convidei um músico, Matheus Nicolau, para musicar alguns poemas e produzimos um espetáculo poético-musical, que apresentamos por dois anos. A poesia saía do livro para o palco, bares, bibliotecas, espaços alternativos. Gosto de frequentar saraus e eventos em que há possibilidade de falar poemas. Exploro muito o teatro para isso. Meu primeiro romance, “O julgamento de Lúcifer” (2013), nasceu no teatro, só virou livro depois. Chegou a ser adotado como leitura obrigatória em uma universidade e em duas escolas de Ensino Médio, graças à circulação da peça. Uso redes sociais também, que são nossas ruas virtuais. A literatura não nasceu nos livros, mas nos palcos, nas praças, feiras, salões; não deve ficar limitada à capa e quarta capa de uma obra.
“Todo verso merece um dedo de prosa”
Autor: Adriano Moura
Editora: Chiado (132 páginas)
Trechos de “Todo verso merece um dedo de prosa”
“Não mediquem minha tristeza”
Por Adriano Moura
“Talvez um escritor talentoso pudesse me dar um destino como o de Luísa. Entediada com a solidão e o cotidiano burguês da sociedade traiu o marido com o primo, amor dos tempos de infância. Você não é meu primo. Mas quem sabe eu deveria ser acometida por uma doença e também morrer, como a personagem do Eça. Ou me suicidar como as adúlteras de Flaubert ou Tolstói. Condenada ao exílio? Não. Sou covarde de mais pra ter o mesmo destino de Capitu.”
“Não meta linguagem”
Por Adriano Moura
Hoje amanheci de poesia
mas não soube dizer,
esperei o verso cair do céu
mas ele quis continuar nuvem,
pensou que mais chuva inundaria meus rios
bueiros
buracos
beiras,
provocaria deslizamentos,
frases orações períodos inteiros
e viraria texto.
Entendo a condição de nuvem do verso:
metamorfose
pode ser planta bicho monstro gente: Deus.
chuva: apenas gota água lama onda lágrima.
Mas enquanto durar a estiagem,
aprendo a pilotar aviões
e a navegar nuvens.