No dia 12 de setembro, foi anunciado o resultado do International Latino Book Awards, premiação que, desde 1997, reconhece as melhores produções literárias latinas anualmente nos Estados Unidos, e o romance de estreia, da brasileira Karina Manasseh, conquistou o primeiro lugar na categoria Melhor Livro de Ficção. “Entre Cabul e a dança das borboletas” (Edite, 260 páginas) conta a história de Maria, uma diplomata que deixa o Brasil depois de sofrer um trauma familiar.
Escrita a partir das experiências de viagens a trabalho da própria autora, que é jornalista, a obra aborda assuntos, como gastronomia, viagens, história, cultura, política e economia. Como pano de fundo, ela traz o relacionamento amoroso entre Maria e João, um advogado casado pelo qual a diplomata se apaixona “e que a faz revisitar as razões que a levaram a deixar para trás a bagagem emocional familiar e questionar escolhas e modo de vida”. Para Maria, a cidade de Cabul, no Afeganistão, traz a promessa de liberdade.
“Eu sabia que tinha vivido experiências únicas nessa viagem e queria encontrar uma forma de contar essas experiências num enredo. Comecei a me perguntar como seria mergulhar numa cultura completamente fora do meu padrão e como seria ‘queimar navios’ e partir? Comecei por me perguntar que tipo de pessoa teria a coragem para se jogar numa aventura assim, onde o desejo de se desapegar só não é maior do que a vontade de se encaixar. Daí surgiu a Maria, a personagem principal deste romance, e fui aos poucos construindo suas motivações. Eu queria escrever sobre uma mulher corajosa, mas também vulnerável, cheia de contradições”, conta a autora.
Karina é paulistana e vive com a família em Washington, nos Estados Unidos, onde fez mestrado em Estudos Latino-Americanos e Ciências Políticas pela Universidade de Georgetown. No momento, ela está curtindo a repercussão de “Entre Cabul e a dança das borboletas”, lançado no final de 2019, mas já escreve uma nova história. “Vai ser também sobre livre arbítrio e uma ideia de como uma opção errada pode desencadear uma espiral sem fim.”
Marisa Loures – Sei que é o primeiro romance lançado, mas, certamente, sua história com as palavras não começou agora. Conte-nos de que forma a literatura passou a fazer parte da sua vida. O jornalismo ficou para trás?
Karina Manasseh – A literatura sempre fez parte da minha vida. Desde criança eu sabia que seria escritora. Eu costumava acordar pelas manhãs e inventar estórias para minha família sobre aventuras que aconteciam durante a noite na minha imaginação. Cresci rodeada de livros, graças ao meu pai que era muito erudito e me incentivou na leitura dos clássicos. A escolha pelo jornalismo, inclusive, foi deliberada, pois eu queria escrever e gostava de aventuras, perigo, adrenalina. Minha outra paixão são as viagens e conhecer novos lugares. Quanto mais inusitados, melhor. O jornalismo ainda faz parte da minha vida, as duas coisas estão superinterligadas. O romance só foi possível porque, através do jornalismo, aprendi a ter um olhar crítico, desapegado e detalhista sobre algumas experiências que o livro traz para os leitores.
– Há escritores que gostam de planejar tudo antes de começar a escrever o livro. Outros preferem que a história flua, deixando seus personagens tomarem rumos não previstos. Como aconteceu com “Entre Cabul e a dança das borboletas”? Esse livro traz um final surpreendente. Ele já estava planejado desde o início?
– Neste livro, o enredo me levou, e eu me deixei guiar pelas escolhas dos personagens. O primeiro capítulo foi o mais planejado, e tentei várias vezes fazer um mapa para alinhavar o que aconteceria depois, mas esse planejamento me travava, e eu não conseguia avançar. Escrevi e reescrevi o primeiro capítulo várias vezes. Achava estranho começar pela metade da estória, mas não conseguia seguir se não fosse assim. Quando eu me deixei levar pelos personagens, a estória fluiu até o final, e confesso que o final também me surpreendeu quando tive a clareza de como essa estória tinha que terminar.
– O romance começa com uma correspondência de João. Ele termina o texto alertando Maria de que, no Afeganistão, ela tenha cuidado com os Talibãs. Quando li a sinopse do seu livro, foi a primeira coisa na qual pensei. Ela diz que Cabul traz a promessa de liberdade para a personagem. Qual a importância dessa cidade e desse país para a sua história? Por que um lugar marcado pela violência desse movimento fundamentalista, marcado pela opressão às mulheres? Por que ele traria essa liberdade?
– Essa é uma excelente pergunta, mesmo porque nunca imaginei que Cabul seria um destino possível e um lugar que eu fosse conhecer. Não sou expert na história recente do Afeganistão, que é muito trágica em todos os aspectos, mas acho que Afeganistão, tem sim, um quê de místico e surpreendente apesar de tanta violência. Para mim, justamente por representar guerra, conflito, destruição, esse seria o destino ideal para a Maria, que, em sua busca por liberdade, acaba idealizando Cabul e as possibilidades de um recomeço por lá (assim como talvez tenha idealizado o romance com João, e com todos os outros homens que marcam sua alma). Para ela, até Cabul era melhor do que o “staus quo” que ela vivia, o que em si é muito interessante. Ela queria, no fundo, escapar de si mesma. O mergulho que ela dá no conflito é uma metáfora para o mergulho necessário que ela precisa dar em todos os seus pré-julgamentos.
– Com esse livro, você compartilha com os leitores sua vivência em lugares únicos, por onde passou a trabalho, como Cabul, Islamabad e Beirute. Claro que a ficção permite que ultrapasse a fronteira entre o que é real e o que não é. Poderia compartilhar conosco alguma história curiosa vivida em lugares em conflito? Como foi estar nesses lugares como jornalista e mulher?
– A ficção permite, sim, uma licença poética, mas acho que aqui o meu olhar de jornalista prevaleceu. Eu mantinha cadernos de viagem e fazia muitas anotações durante essas viagens que serviram para dar o colorido realista sobre esses lugares. Uma história fascinante, por exemplo, que eu vivi em Cabul foi que, em uma tarde, um menino de rua estava no trânsito com uma dúzia de ovos na mão para vender, e um homem mais velho passou perto, empurrou o menino e os ovos todos se espatifaram no chão. O menino começou a chorar, e a minha reação, obviamente, foi abrir a bolsa e dar alguns dólares para o menino. Alguns dias depois, estava conversando com um grupo de expatriados e relatei o caso, e duas pessoas no meu grupo tinham presenciado a mesma cena em dias diferentes, ou seja, era um teatro de rua muito bem armado. Cheguei à conclusão de que havia um excesso de ovos no país!
– Como é estrear na literatura já conquistando o primeiro lugar no International Latino Book Awards 2020, premiação que reconhece as melhores produções literárias latinas anualmente nos Estados Unidos?
– Esse prêmio foi uma grande surpresa para mim, não estava esperando mesmo. Eu gosto do meu livro, acho que está bem escrito, editado, que conta uma história bem amarrada e que prende o leitor. As cartas, os trechos de correspondência e de passagens literárias dão um toque especial no livro. O prêmio confirmou essa sensação que eu já tinha de que o livro é bom mesmo e de que vale a pena ser divulgado. Também foi interessante a opinião dos júris, que disseram que seria um bom filme. Várias pessoas já me disseram que, como o livro é muito visual, seria fácil fazer uma adaptação para as telas, mas acho que, primeiro, vamos ter que traduzir para o inglês e espanhol.
– Você é brasileira, nasceu em São Paulo, mas mora em Washington, Estados Unidos. Suas referências literárias são brasileiras ou norte-americanas? Ou as duas? Quais romancistas a influenciam, e o que na obra deles mais chamam sua atenção?
– Minhas referências literárias são globais. Não me canso de ler Machado de Assis. Posso ler e reler mil vezes e sempre me surpreendo com um viés novo que ele traz, é como se ele estivesse brincando com o leitor. Aliás, o Machado de Assis está sendo descoberto agora pelos americanos. Saiu em 2018 uma coletânea em inglês dos melhores contos dele que eu amo. Clarice Lispector, assim como Virginia Woolf, também. Hemingway me influenciou muito, acho que ele foi o mestre em despir as frases de qualquer rebuscamento desnecessário assim como J.D. Salinger. Camus e Sartre, quando passei pela fase existencialista. Depois tem todos os latino-americanos desde Borges até Gabriel García Marquez, Vargas Llosa e, mais recentemente, Juan Gabriel Vásquez. Dos mais contemporâneos, eu adoro Orhan Pamuk, Elena Ferrante e Ian McEwan e Amos Oz.
– O que você esperava despertar nos leitores com esse romance?
– Acho que, principalmente, a curiosidade por esses lugares que eu visitei e também o reconhecimento de que nesse nosso mundo global somos todos iguais nos desejos, nas inseguranças, nos medos e nos nossos quereres. E que, tudo que acaba, acaba bem porque, senão, não teria acabado. Acho que o final tem uma mensagem importante de esperança tão necessária para esses tempos conturbados em que estamos vivendo.
Sala de Leitura – toda sexta-feira, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30)
Trecho do livro “Entre Cabul e a dança das borboletas”
Por Karina Manasseh
Querida Maria,
Não sabe a lua minguante que vejo da minha janela. Comigo o Octavio Paz falando de amor e erotismo. Na cabeça mil pensamentos. Será esta tua viagem a Cabul mais um teste? Por que precisamos estar sempre indo para algum lugar, buscando o novo, o diferente, o inesperado? O caminho menos percorrido? Esta maldita inquietação. Esta viagem foi escolhida. Escrevo para organizar as ideias. Para clarear o que me perturba. Me perturba pensar que eu estou indo para Washington e você não vai estar lá.
Me sinto pleno, por tua causa. Me sinto agradecido pelo ano que tive, pelas experiências que busquei e vivi, pelo autoconhecimento que me permiti. Me sinto encantado pela mulher pela qual me apaixonei. Me sinto apaixonado pela vida. Me sinto aquecido pela faísca que recuperei, por esta febre interna. Esta vontade de seguir em frente.”