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Livro de Fabricio Sereno é “tapa na cara providencial”

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Em “17 Degraus”, Fabricio Sereno traz um relato sobre o trabalho frente à oficina teatral de reabilitação psicossocial dentro do CAPS Guida Sollero, de Ubá – Foto de Filipe Rufato

Em abril de 2015, Fabricio Sereno foi chamado ao Caps (Centro de Atenção Psicossocial ) Guida Sollero, de Ubá, para realizar uma oficina teatral de reabilitação psicossocial com os pacientes da instituição, dentro do projeto “Câmera, Luz, CAPS em Ação”. Chegando lá, fez questão de contar o número de degraus que ligavam a área dos funcionários da dos pacientes. Era seu primeiro contato verdadeiro com pessoas com sofrimento mental.  “Dezessete degraus que separavam um mundo de fantasia preconceituosa de uma realidade muito mais rica”, conta o ator e diretor no livro “17 degraus”, obra em que ele relata a criação do Grupo Teatral Queira Ou Não Estamos Aí e a descoberta de um método próprio de trabalho denominado “A dramaturgia do indivíduo.” Daquele não tão distante mês de abril até dezembro de 2016, foram montados e apresentados com os usuários do Caps os espetáculos “Queira ou não estamos aí” e “À liberdade do palhaço”.

Na obra, Sereno compartilha com o leitor as lembranças de todo o processo realizado longe do olhar do público. A cada nova memória trazida, queremos conhecer mais e mais histórias. É curioso, através das páginas da publicação, poder “caminhar” com os atores desde o início, quando tudo ainda era muito cru, a arte teatral ainda era desconhecida, e cada “erro” em cena era acompanhado de um pedido de desculpas. É emocionante ver que, quando o bichinho do teatro morde, não tem mais volta. E aí vem a vontade de subir ao palco e apresentar sempre.

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“Algumas mudanças de atitude foram observadas, como, por exemplo, ocuparem seus lugares de cidadãos, que vai desde a independência de tirar um documento de identidade a conversarem com membros de outros grupos teatrais como iguais. Observamos também que é necessário acompanhá-los de perto perante toda essa liberdade que é proposta. Um dos usuários, certa vez, eufórico com toda a repercussão do teatro, acidentou-se de bicicleta na estrada para Divinésia. Melhoras em quadros clínicos, como depressão, crises e até mesmo reabilitação após um AVC foram observadas. O teatro muda a vida do praticante, seja qual for sua condição. No caso da pessoa com sofrimento mental, onde tudo é potencializado, essa mudança é muito maior”, enfatiza o diretor.

O livro “17 degraus” foi lançado nacionalmente na cidade de Tiradentes, durante o “Tiradentes em cena”. No próximo dia 24 de maio, é ao público de Cataguases que ele será apresentado. O evento, que terá performances com convidados, está programado para as 19h30, no Centro Cultural Humberto Mauro. A entrada gratuita. Há previsão de lançamento em Juiz de Fora, no mês de julho, e já tem agenda para Barbacena, Ubá e Conselheiro Lafaiete.

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Marisa Loures – O livro começou a ser escrito em fevereiro de 2017 e só agora está sendo lançado. Por que esse hiato?

Fabricio Sereno – Aprovamos um projeto no Ministério da Saúde para circulação dos espetáculos, exposição fotográfica, criação de um documentário e lançamento do livro. Por conta de problemas políticos (mudança de administração) a verba ficou retida no município até que foi finalmente devolvida. Esperei esse tempo para a decisão da prefeitura, além de me preparar financeiramente para arcar com as despesas da publicação.

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– Como é fazer teatro com uma trupe tão especial?

– É sempre um desafio, não por conta das particularidades do grupo, mas para que eu entenda realmente o que querem e o que podemos levar em cena a partir disso. Tenho um dos elencos mais disponíveis que já trabalhei, com histórias contadas por todo o corpo. E é incrível como o público parece ter a certeza de que, daquele grupo, não sairá nada, e como aplaudem pela preconceituosa descrença na capacidade artística da pessoa com sofrimento mental ter sido quebrada.

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– Foi uma experiência muito diferente, já que era um grupo distinto do que você estava acostumado a trabalhar. Conte como foi o início desse caminhar.

– Confesso que o primeiro desafio foi convencer o grupo de que eles tinham um lindo material a ser levado para a cena, bastava apenas escolhermos com o que trabalhar. Os pacientes não se achavam capazes de subir no palco, muito menos de que suas histórias interessariam a alguém. O segundo, e, talvez, maior desafio, foi quebrar meu próprio preconceito quanto ao novo grupo que pouco a pouco se formava. E com o espetáculo que surgia, o desafio passou a ser convencer-me daquilo que estava criando, e não somente vomitar conceitos artísticos.

Maria Alzira, Iracema, Terezinha e Elaine compõem o elenco do espetáculo “Queira ou não estamos aí” – Foto de Filipe Rufato

– Seus atores se entregaram facilmente ao que você propunha?

– Quando começamos com as atividades teatrais todos estavam muito desconfiados, não conheciam nada da linguagem teatral. Testavam, duvidosos, as propostas que eu levava diariamente, que, confesso, pareciam estranhas num primeiro momento. Com o tempo, fomos aprendendo a brincar, jogar, trabalhar juntos. Hoje os integrantes do Grupo Teatral Queira Ou Não Estamos Aí se entregam abertamente a todas as propostas, tanto minha quanto externas, incidentais.

– Você diz que o grupo Queira Ou Não Estamos Aí é um tapa na cara providencial e uma identidade que tanto procuravam. Seus atores tinham consciência do que significava esse nome?

– “Queira ou não estamos Aí” é uma frase que atualmente uso em minha solo performance “Eu, até segunda ordem”, criada a partir do Teatro Essencial de Denise Stoklos, sempre que quero falar sobre um grupo que sofre as mazelas do preconceito (mulheres, homossexuais, negros, ateus, artistas etc). O grupo demorou um pouco para entender o protesto que o nome traz. Hoje usam como jargão ao contarem alguma conquista.

– Explique o método de trabalho denominado “A dramaturgia do indivíduo”, que foi utilizado durante as oficinas.

– Existe “A Dramaturgia do ator”, onde o espetáculo é construído a partir dessa figura principal do teatro, figura essa que domina a técnica. “A Dramaturgia do indivíduo” é o método de trabalho que criei a partir da realidade dos usuários do CAPS. Primeiramente, é um indivíduo, sem o domínio da técnica, como é o caso do ator. Não é proposto tema, música, roteiro ou texto para se dar início ao processo de construção do espetáculo. O método baseia-se na observação de como agem, como jogam, como se comportam perante as atividades propostas, que podem variar desde uma conversa a jogos teatrais. Depois, basta editar.

– Em um dado momento, você diz que “há grande necessidade de o projeto expandir-se da esfera terapêutica e atingir também a esfera artística, onde será apreciado com outros olhos e comentado pela opinião pública.” Diz também que, esse ano, o grupo sairá para apresentação em festivais. Será o início dessa expansão para outra esfera?

– O grupo, na verdade, percorreu muitos festivais no ano de 2017. Pretendemos levá-lo a outras cidades, outros públicos ainda em 2018. O lançamento do livro é o início de minha despedida do trabalho de teatro na saúde mental. Pretendo encerrar minha passagem pelo CAPS ainda em 2018. Com o tempo, entendi que, defender a arte a partir da visão do poder público, é extremamente desgastante e desmotivador.

– Acredito que, depois de todo esse tempo, certamente algo mudou dentro desses atores. Se não estou enganada, o bichinho do teatro já os mordeu, e eles não são mais tão “crus” diante dessa arte…

– Hoje não se satisfazem com apresentações em qualquer lugar, ou com público escasso. Querem bons palcos, além de uma plateia atenta e participativa. Não sentem que têm que ser vistos porque são “os doidos do teatro”, mas porque são um grupo teatral como qualquer outro que quer levar sua arte para o outro. Entendem também a responsabilidade de estarem em cena, perante um público que doa seu tempo para assisti-los.

 

Maria Alzira, Elaine, Marcilene, Lúcia e Geísa (enfermeira) em mais uma cena do espetáculo “Queira ou não estamos aí” – Foto de Filipe Rufato

– Ao relatar seu primeiro contato com o Caps, você descreve suas primeiras impressões e a passagem de um mundo preconceituoso para uma realidade muito mais rica. Tenho certeza de que, depois do tempo de trabalho, as mudanças positivas não ocorreram somente na vida dos pacientes, mas na sua também…

– Hoje me preocupo muito mais com seres humanos do que com qualquer outra coisa. Minha tolerância para preconceituosos tem sido cada vez mais baixa. Na minha solo performance “Eu, até segunda ordem”, inicio dizendo: “Não sou mulher, não sou negro, não sou homossexual nem diagnosticado com algum transtorno mental, pelo menos por enquanto; mas me sinto totalmente livre para tomar partido de quem eu quiser. Então não me encham o raio do saco!” Me considero um “ateu espiritualizado”, não vejo por que seres humanos têm que deixar de conviver ou se respeitar por dogmas retrógrados. No meio de todo esse fogo cruzado de polarizações, torço muito para que o que nos reste seja a capacidade de dialogar, pura e simplesmente.

Sala de Leitura

Quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora  (AM 1010)

“17 degraus”

Autor: Fabricio Sereno

 

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