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Richard Morse pelo olhar de Beatriz Domingues, uma intelectual apaixonada

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A pesquisadora e professora procura mostrar a forte presença de comparações inusitadas com os Estados Unidos em tudo que Richard Morse escreveu sobre a América Latina e o Brasil – Foto Divulgação

Helena Bomeny diz, no prefácio de “Richard Morse entre os Estados Unidos e o Brasil” (Editora UFJF, 248 páginas), que Beatriz Domingues é uma dessas pesquisadoras que “como ourives, cuida de minúcias, de contornos, do que não está visível, do que, em estado bruto, pode ser transformado em peça de arte, enfim, daquilo que, como objeto de interesse, se depura na imaginação de uma intelectual apaixonada.” A professora aposentada da Universidade Federal de Juiz de Fora considera tais palavras exageradas, todavia, confidencia que tal qualidade mencionada, certamente, decorre de seu convívio de anos e anos com Morse. A convivência se deu através de seus escritos, é fato, mas também por meio da relação que se desenvolveu como sua orientanda. Daí, o olhar apaixonado com que se entrega aos estudos da obra do pensador de Nova Jersey, morto em abril de 2001.

 

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“Descobri nele um intelectual que, como eu, tinha muitos amigos sem qualquer ligação com o mundo acadêmico. Também muito importante sobre o fascínio que o trabalho de Morse exerceu sobre mim foi o fato de ele ter mergulhado na cultura latina sem perder o “olhar estrangeiro”. O historiador norte-americano se olhou no espelho da América Ibérica, digeriu essa cultura como sugeria a antropofagia modernista – abrindo-se para as mais diversas influências e fazendo sua própria leitura delas – e, como um canibal, se alimentou dessa experiência. Esse foi o método que aprendi com ele e tentei repassar para alunos e orientandos. Mesmo aposentada, mantenho um grupo de estudos com ex-alunos chamado Antropófagos”, conta Beatriz que lança “Richard Morse entre os Estados Unidos e o Brasil” nesta terça-feira (19), às 19h, na Arteria.

 

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Originalmente publicado como tese de professora titular na UFJF em 2015, o livro traz um estudo da obra de Morse com ênfase nas relações dele com os estudiosos do Brasil e da América Latina nos Estados Unidos e com os intérpretes nativos do Brasil. Aliás, “Morse vê sabedoria e originalidade na maneira de ser do brasileiro e dos seus irmãos latino-americanos”, destaca o jornalista Matthew Shirts, em texto para o novo livro de Beatriz.  De acordo com a professora, foi na década de 1940 que Richard Morse passou a visitar o Brasil e aqui conviveu com nomes que se tornaram seus mentores, como Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Antonio Candido.

 

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“Ele não sentia apenas a necessidade de conhecer sua história e sua configuração urbana. Precisava senti-la, conhecê-la com a razão e o coração”, afirma ela, reforçando o que torna os estudos do autor de “O espelho de próspero”, obra polêmica e nunca publicada em seu país, tão necessários no presente. “O interesse dos estudos de Morse para o momento atual – de retomada da situação de subjugação aos Estados Unidos em escala nunca conhecida em nossa história – seria questionarmos a interpretação da história dos países ibéricos e daqueles colonizados por eles no continente americano pelo viés negativo, do que lhes falta para serem como os Estados Unidos e a Europa ocidental, agora baseados em nossa própria experiência nos primeiros 15 anos do século XXI.”

 

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 Marisa Loures – Como se deu seu encontro com Richard Morse?

Beatriz Domingues – Meu primeiro encontro com a obra foi em 1988, quando li o então polêmico ensaio de Richard Morse (1922-2001), “O espelho de Próspero” (1988), que suscitou um grande debate na sociedade brasileira por conta de teses suas bem pouco convencionais sobre as colonizações anglo-saxã e ibérica nas Américas. Três anos depois, em 1991, surgiu a oportunidade de conhecê-lo no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Nada do que Morse disse naquela ocasião ficou registrado em meu cérebro, mas a emoção que vivi permanece. Consegui agendar com ele um café da manhã no Hotel Debret, em Copacabana, onde estava hospedado. As três horas que passamos juntos mudaram os rumos de minha vida, uma vez que aceitei seu convite para que fizesse minha pesquisa de doutorado orientada por ele, em Washington D. C., onde, me garantiu, eu teria acesso à Divisão Hispânica da Biblioteca do Congresso, à Biblioteca Oliveira Lima e, modestamente, a sua “própria biblioteca”. Em janeiro de 1993, cheguei a Washington DC para o doutorado sanduíche com minhas duas filhas, então com 10 e 7 anos. Embora declarasse não gostar de crianças, conversava muito com a Maria e com a Bárbara, que chegaram a ser presenteadas com os primeiros livros que ele havia lido e com as primeiras poesias que havia escrito. A agenda de Morse era então bem calma: passava a maior parte do tempo em sua casa, conversando com frequência por muitas horas por dia, vários dias na semana. Estabelecemos uma relação de mestre-guru, com o qual sempre tinha sonhado. Os anos seguintes foram de muitas conversas, festas, alegrias e tristezas. Talvez eu esteja recordando isso para melhor compartilhar com os leitores – familiarizados ou não com o meu trabalho -, a homenagem que faço a Morse, in memoriam, neste livro, que resulta de um momento tão importante de minha carreira. Sua morte, em 2001, talvez tenha, inclusive, me instigado a reler ensaios e a ler outros ainda na prateleira, bem como me lembrar e/ou descobrir autores e obras que, se por um lado apertavam as saudades e a vontade de retroagir no tempo, para conversar com ele, por outro, tenham sido, quem sabe, minha motivação para escrever esta tese, agora convertida em livro, cobrindo um pouco esse vácuo. Daí eu denominar o livro meio autobiográfico.

 

 – Qual é o enfoque que você dá à obra de Morse nessa publicação? Por que trabalhar essa perspectiva?

A ideia da tese e do livro foi demonstrar que, nos ensaios e livros escritos por Morse em diferentes momentos de sua carreira, é muito difícil, para não dizer impossível, analisar suas interpretações sobre o Brasil e a Hispano-América sem atentar para o que ele estava dizendo, de forma direta ou indireta, sobre os Estados Unidos. Morse me parece estar “tão longe e tão perto” não apenas da América Latina e do Brasil, como também dos Estados Unidos: ao mesmo tempo em que interpretava alguns aspectos na América Latina, adotava a atitude de observador da história e da cultura norte-americanas.

– Qual é público-leitor deste livro?

Como o livro não fez alterações significativas na tese, escrita para um público acadêmico, presumo que o livro também, embora espere que venha a ser sido lido por pessoas de fora do círculo.

– O que Morse nos diz a respeito do Brasil e do brasileiro?

Durante décadas, inclusive as de 1980 e 1990, quando Morse tornou-se conhecido no Brasil, a imagem que os Estados Unidos tinham da América Latina era a de uma terra exótica com um desenvolvimento econômico obsoleto. Tristemente, coincidia com a que nós brasileiros tínhamos de nós mesmos. Em 2011, publiquei um artigo na Revista da Biblioteca Nacional, intitulado “O país do futuro: Contrariando muitas teorias, Richard Morse acreditava que as grandes nações do século XXI seriam os países de colonização ibérica”. Argumentei, naquela ocasião, que, embora, a partir da primeira década do século XXI, muitos especialistas de diversas nacionalidades reconheciam que nações como o Brasil tinham todo o potencial para figurar entre as mais desenvolvidas do planeta nos próximos anos. Mas que Morse havia sido um pioneiro na segunda metade do século XX. Ele chegou a comparar seus próprios prognósticos para o Brasil com as previsões do escritor francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) para o seu país em meados do século XIX. Entre outras antevisões, Tocqueville afirmara que os Estados Unidos e Rússia seriam as duas grandes potências do século XX. Morse, por sua vez, acreditava que o Brasil seria uma nação bastante desenvolvida no século XXI, reforçando sua premissa de que o continente sul-americano poderia optar por se civilizar de um jeito diferente do norte-americano ou europeu ocidental. Morse se notabilizou por perceber algumas das deformidades no desenvolvimento de seu país – o American way of life – e por admitir que as sociedades ibéricas fossem civilizações sofisticadas e muito mais abertas e preparadas para encontros entre culturas do que a inglesa.  Ou seja, a América Latina não seria tão selvagem e grotesca, o que foi considerado indecoroso por seus conterrâneos.

 

– E 30 anos depois da publicação de “O espelho de Próspero”, as teses pouco convencionais nela contidas ainda causam polêmica?

Até muito recentemente, diria que suas teses tornaram-se muito menos polêmicas do que nas décadas de 1980 e 1990, quando exclamações do tipo “como teria sido diferente a nossa história se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses!” pipocavam dentro e fora dos meios acadêmicos. “O espelho de Próspero” abalou fortemente essa visão ao oferecer uma erudita análise histórica, filosófica e sociológica das sociedades ibéricas e ibero-americanas no contexto da civilização ocidental. Sua tese central era que tais sociedades eram civilizações sofisticadas e muito mais abertas e preparadas para encontros entre culturas do que a inglesa. Isso entrava em rota de colisão com o American way of life, intimado por ele a se mirar no espelho a fim de perceber seus defeitos e deformidades, bem como a reconhecer eventuais qualidades da América Latina. Foram também curiosamente rejeitadas por parte importante dos acadêmicos de países como o Brasil, imbuídos do complexo de inferioridade. Sua pergunta me fez ponderar se, hoje, infelizmente, talvez as teses poucos convencionais de Morse – que deixaram de sê-lo na primeira década do século XXI mesmo nos EUA, onde ele passou a ser considerado um “clássico” -, pudessem voltar a causar desconforto em certos setores do Norte e do Sul em decorrência da retomada da Doutrina Monroe (América para os americanos) e do mito do excepcionalismo aliado a ela, nos Estados Unidos, e do renascimento do complexo de vira-latas (sentimento de inferioridade) entre nós. Claro que, em ambos os países, refiro-me aos respectivos governos e grupos que os apoiam.

 

– Em uma entrevista de abril de 1988, Richard Morse disse que o caminho que ele escolheu para tratar da história da cidade de São Paulo “foi identificar alguns momentos culturais importantes e tentar perceber a mentalidade das pessoas.” Parece-me que Richard Morse parte da cultura para enxergar o mundo. Seria isso mesmo?

Sim. Ele se mostrou muito diferente da maioria dos norte-americanos que estudavam o Brasil naquele tempo, pois tentava estabelecer suas teorias baseado em outros tipos de fontes e de contatos. Quando aterrissou em São Paulo pela segunda vez, em 1947, queria escrever um livro e não uma tese, pois não desejava entrar para o mundo acadêmico. Seu desafio era decifrar como e por que aquela cidade enorme, que todo mundo dizia ser a Chicago da América do Sul, havia surgido e crescido, e que forças econômicas teriam eliminado de sua paisagem quase todos os sinais de uma tradição arquitetônica anterior. O fato de a metrópole não ter extinguido a comunidade era o traço mais fascinante para ele.

 

“Sobre as eventuais reações de Morse ao que eu considero o bizarro e triste momento pelo qual passa o Brasil, penso que ele provavelmente compartilharia da minha tristeza por motivos psicológicos, históricos e sociológicos. Ele certamente ficaria decepcionado, pelo menos momentaneamente, com seu papel de Tocqueville no Brasil, acima mencionado. Na primeira década e meia do século XXI, com os governos Lula e Dilma, o Brasil como que “comprovou” sua tese sobre a possibilidade de desenvolvimento e modernização. Desde 2015, contudo, o Brasil retorna a uma situação pior do que a da década de 1980, quando o livro foi escrito. Ainda mais triste para ele seria constatar o clima de ódio espalhado pelo país cujo convívio humano tanto o atraiu. Mas, quem sabe, talvez conseguisse enxergar uma luz no fim do túnel movido pela abordagem de longo prazo e “estrangeira” que lhe eram características.”

 

– Nessa mesma entrevista, foi perguntado a Morse o que ele responderia a comentários feitos por ocasião do lançamento do livro “Espelho”: “O Brasil vai mal, exceto para Morse”. Morse respondeu que uma das críticas mais recorrentes a ele se deve ao fato de ele não tomar uma posição forte contra a ditadura no Brasil, não falar da situação atual. Ele disse ainda que procurou outro caminho, evitando as complicações das conjunturas atuais. Você arriscaria dizer se Morse evitaria as complicações do Brasil atual?

A frase “O Brasil vai mal, exceto para Morse” foi dita pelo principal crítico de sua obra, Simon Schwartzman, em 1989, em defesa de uma interpretação da nossa história baseada no espelho norte-americano, e não por uma preocupação com a situação social brasileira. É fato que Morse foi bastante questionado por não assumir posicionamentos políticos sobre as relações entre Estados Unidos e América Latina no contexto das ditaduras militares implantadas na região na década de 1960 com o aval e, muitas vezes, com ajuda direta do seu país. Eu mesma, antes dessa pesquisa, nunca li ou ouvi de Morse qualquer defesa nesse sentido. Ele sempre desconversava e/ou se justificava dizendo “estar mais preocupado em dizer coisas menos óbvias” e com o longo prazo. Fui surpreendida ao descobrir, no Arquivo da Unicamp, em 2012, uma nota de protesto publicada no NYT (New York Times), em 1970, assinada por ele e três outros latino-americanistas norte-americanos Thomas Skidmore, Stanley Stein e Charles Wagley , em defesa de Caio Prado Júnior, expulso da USP durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici no Brasil (1969-1974). Sobre as eventuais reações de Morse ao que eu considero o bizarro e triste momento pelo qual passa o Brasil, penso que ele provavelmente compartilharia da minha tristeza por motivos psicológicos, históricos e sociológicos. Ele certamente ficaria decepcionado, pelo menos momentaneamente, com seu papel de Tocqueville no Brasil, acima mencionado. Na primeira década e meia do século XXI, com os governos Lula e Dilma, o Brasil como que “comprovou” sua tese sobre a possibilidade de desenvolvimento e modernização. Desde 2015, contudo, o Brasil retorna a uma situação pior do que a da década de 1980, quando o livro foi escrito. Ainda mais triste para ele seria constatar o clima de ódio espalhado pelo país cujo convívio humano tanto o atraiu. Mas, quem sabe, talvez conseguisse enxergar uma luz no fim do túnel movido pela abordagem de longo prazo e “estrangeira” que lhe eram características.

Sala de Leitura – Toda quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010).

 

“Richard Morse entre os Estados Unidos e o Brasil”

Autora: Beatriz Domingues

Editora: UFJF, 248 páginas

Lançamento: 19 de março, às 19h, na Arteria (Rua Chanceler Oswaldo Aranha 535 – São Mateus).

 

 

 

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