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Maria Aparecida R.Lacerda: “A miséria humana sempre me tocou profundamente”

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Maria Aparecida Rezende Lacerda lança “O gato preto e outras histórias”, livro em que a autora escancara as mazelas humanas – Foto Acervo pessoal

Lina não podia se mexer. Estava numa cama de hospital gravemente ferida. Não se lembrava de que fora, novamente, agredida por seu marido. Ele tomava conta de todos os seus passos. No início do casamento, eram apenas agressões verbais. Ela achou que ele mudaria. Com o tempo, ele ficou mais agressivo. Ela chegou a pensar em denunciá-lo, mas sentiu vergonha. Se antes ele pedia perdão, passou a falar em matá-la. Para evitar violência, ela suportava todas as humilhações. Com as pernas e os braços imobilizados, Lina estava certa de que aquela fora a última vez que apanhara.

Essa mulher, vítima de violência doméstica, é a protagonista de um dos contos do novo livro de Maria Aparecida Rezende Lacerda, autora que sempre teve sensibilidade para as mazelas humanas. A violência contra a mulher, o ciúme doentio, o estupro, o racismo, o abandono, os maus-tratos aos animais e ao ser humano, as drogas, o suicídio, entre muitos outros problemas de nossos tempos, estão retratados nos 22 textos, entre contos, microcontos e novelas, de “O gato preto e outros contos” (Paratexto, 264 páginas).

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Já na dedicatória, o leitor percebe que o gato preto que dá titulo ao conto que fecha a obra não representa apenas um gato. Ele representa os invisíveis, os que vivem à margem da sociedade. “Tem um gato lá fora/nesta noite escura/ sem lua/ tão só na solidão/da rua/tão negro, com medo,/ com fome, com frio,/ abandonado/ escorraçado/ excluído./ Tem um monte de gente/ lá fora/ neste mundo sujo/ escuro/ com medo/ sem sonhos/ sofrido/ marginalizado/ excluído”, escreve ela, em versos.

“A miséria humana sempre me tocou profundamente, sempre me deixou desconfortável e impelida a fazer alguma coisa para atenuar, de alguma forma, esse desassossego que me assola a alma quando tomo conhecimento de alguma tragédia, de alguma injustiça, seja ela de que tipo for”, dispara Maria Aparecida, confidenciado que passou pela triste experiência de ter um gato de estimação muito querido envenenado por vizinhos. E esse fato foi um dos gatilhos para o novo projeto. “O que aconteceu com o meu gatinho preto de estimação, a constatação da  intolerância e da maldade das pessoas, a ignorância quanto ao fato de imaginarem que  um gato preto dá azar e é portador  de alguma maldição, foi o que me levou a escrever esse conto e fazer dele, o gato preto,  o porta-voz de todos os outros personagens do livro e, quem sabe, levar os leitores a uma reflexão sobre esses assuntos.”

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Maria Aparecida Rezende é membro da Academia de Letras da Manchester Mineira, da Academia Juiz-forana de Letras e da Liga dos Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora. É também autora de “Não apague a luz ainda” (2017), “Fragmentos da alma” (2018) e “Tulipas” (2020).

Como nasceu “O gato preto e outros contos”? 

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O “Gato preto e outros contos” nasceu para concorrer na vigésima quinta edição da Lei Murilo Mendes em 2019.A lembrança que eu guardava de um lindo gatinho preto que eu tive há alguns anos atrás,  sua morte trágica por envenenamento, me motivou a escrever esse livro, colocando nele todas as agruras pelas quais muitos humanos e animais passam durante sua vida. Eu quis mostrar que o sofrimento e a violência estão por toda parte e atinge todo ser vivo, seja através de atos concretos, como o envenenamento de animais de rua, como os maus-tratos que as crianças e animais e idosos sofrem, os assassinatos de toda ordem, a violência contra mulheres e crianças, estupros e outros absurdos. Também, na forma psicológica, através do bullying, do ciúme doentio, da rejeição e abandono, das superstições, do racismo,  etc. Quase todos os contos abordam temas sociais, algo que sempre esteve presente na minha escrita. Quanto ao resultado da Lei Murilo Mendes, fui aprovada, mas não contemplada.  Fiquei como suplente. Passada a frustração, e vendo o projeto tão bem cuidado, tão bem elaborado pela Fernanda Vizian (Editora Paratexto), que me deu total apoio na produção do livro para a Lei Murilo Mendes, senti uma dorzinha no peito por ter que engavetá-lo. Então, abrimos mão de alguns pormenores, adequamos o antigo projeto e levamos adiante a publicação do livro.

A professora Leila Barbosa destaca no prefácio que os escritores têm uma função social definida. No seu livro você nos prova isso, denunciando mazelas da nossa sociedade, como a violência contra a mulher e o machismo estrutural. “Fragmentos da alma”, seu segundo livro, também traz poemas que escancaram as injustiças do mundo em que vivemos. Percebo que é sua marca usar a literatura a serviço da sociedade…

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Mas é exatamente isso que desejo. Ou, pelo menos, é o resultado que eu gostaria de alcançar. Isso vem desde os meus tempos de estudante. Quando as redações eram com temas livres, eu sempre desenvolvia algo relacionado com as adversidades da vida, os infortúnios e mazelas do ser humano,  as injustiças sociais. Também, já naquela época, me preocupava com o meio ambiente, com a natureza e os maus-tratos dispensados à nossa Mãe Terra. O termo ecologia ainda não era usado naquela época. Sempre fui uma pessoa inconformada com a indiferença, com o desamor, com a existência de tantos “tumores” espalhados no nosso tecido social. Quanto à escrita, sempre foi para mim uma válvula de escape. Uma forma de aliviar minhas tensões. Funciona como uma terapia. E eu não queria guardar isso só para mim, queria compartilhar, cutucar, provocar, denunciar, criar um ambiente de debate, de reflexão e busca de soluções.

Sua literatura traz questões muitos atuais. Temos, por exemplo, o conto “Tragédia anunciada”, que apresenta uma reflexão sobre o desastre de Brumadinho. Como a atualidade mexe com a sua inspiração?

Confesso que gostaria que a realidade atual fosse mais amena, mais condescendente comigo e com todos os brasileiros. Mas não é isso o que acontece. Todos os dias somos surpreendidos com uma notícia ruim, com uma tragédia, um crime bárbaro, desabamentos, inundações, conflitos entre polícia e marginais, decisões judiciais equivocadas, morte prematura de crianças por balas perdidas, crimes bárbaros de pedofilia, racismo, homofobia, etc. Mas me revolta saber que algumas tragédias são frutos da ganância e do descaso com a vida alheia e que poderiam ser evitadas.  No momento, o que me aflige é essa pandemia. Com ela, veio o confinamento, o distanciamento social, o agravamento das tensões sociais e políticas, o receio de perder os empregos, o medo da contaminação, o descaso e o despreparo de muitos governantes para enfrentar o problema, a dor da perda de tantas vidas e, ao mesmo tempo, a irresponsabilidade de muitos, não respeitando os protocolos e colocando a vida dos outros em risco. Tudo isso me tira o sono e me faz mergulhar em reflexões e angústias. O que me alivia é, exatamente, a escrita, mas existe um embate dentro de mim. O desejo que isso termine logo, que o mundo e os humanos se harmonizem e que eu possa encontrar bons e agradáveis motivos de inspiração para escrever.

Maria Aparecida e uma de suas gatinhas de estimação, amiguinha do gato preto tão querido que morreu envenenado – Foto Acervo pessoal

O último conto traz Ulisses, um gatinho preto que, depois da morte de sua dona, foi muito esperto e conseguiu sobreviver, mesmo morando nas ruas. Ulisses representa os invisíveis para a sociedade, aqueles que não têm onde morar. O livro termina com um final feliz. Era essa a ideia? O que espera despertar no seu leitor?

Compaixão. Acolhimento. Empatia. Eu poderia seguir na trilha de infortúnios de quase todos os personagens do livro e reservar um final sinistro para o Ulisses. Ele era um gato preto e, no imaginário de muitas pessoas, encontrar um desses animais dava azar. Foi abandonado. Poderia ter encontrado, facilmente, a morte. Mas, aí é que está o “x” da questão! Ulisses, para mim, também representa a esperança, superação,  resiliência. Merecia um final feliz. Eu não sou uma pessoa amargurada, desiludida, melancólica, sofredora, negativista. Eu não queria passar essa ideia para o leitor. O mundo pode ser cruel, mas sempre existirá alguém que poderá oferecer uma oportunidade de salvação, de resgate, de recomeço. Não podemos perder a fé nem a confiança no ser humano. Ainda podemos encontrar pessoas de bom coração que possam oferecer amor ao próximo. Ulisses encontrou.

Crônica é um gênero pelo qual você tem muito apreço. Foi com ela que fez sua estreia na literatura. A escrita “flui com mais facilidade”. Já a poesia, segundo você, é mais exigente. Agora, retorna à prosa, entregando-nos um livro de contos, microcontos e novelas. O que achou da incursão por esses novos gêneros? Como foi a experiência?

Então, a coisa aconteceu da forma mais natural possível. Eu acho que tenho uma mente bastante criativa. Gostava de inventar histórias quando era criança, mas não contava para ninguém. Ficavam guardadas dentro de mim, como os meus sonhos. Agora, de repente, me vi escrevendo contos, o que é bem diferente da crônica. E até me aventurei em textos longos, com histórias complexas, considerados novelas. Gostei da experiência. Vou esperar o resultado deste primeiro livro de contos, vou aguardar as críticas, os feedbacks, a opinião dos leitores, dos amigos, de outros escritores para saber se fui bem-sucedida.

“Sonho kafkiano” é o único texto escrito em primeira pessoa. Nele, você relata uma experiência de estar observando você mesma, deitada numa maca. E aí começa a dissecar aquela que está ali, passa a explorar sua alma e seu corpo, viajando por várias lembranças. O que esse conto representa dentro desse livro?

Quando organizei o livro e escolhi os contos, o “Sonho kafkiano” não estava programado para fazer parte dele. Ele não tinha nada a ver com os outros, fugia da temática, mas, depois, achei que ele podia entrar como um contraponto. Ser um hiato em meio à turbulência, uma rajada de ar fresco num dia sufocante. Afinal, nem só de dores a vida é feita. Além do mais, foi algo que escrevi com a alma. Escrevi na minha condição de mulher, com toda a força do  “feminino” que existe em mim, exposto, compartilhado, declarado. Quis dividir com todas as mulheres, minhas inquietações, minhas lembranças, minhas apreensões, minhas sensações, minhas culpas e arrependimentos, minhas realizações, minha felicidade, minhas frustrações, mas, acima de tudo, a minha maior realização que foi a maternidade. O reencontro das duas no final do conto, a que está na maca, (minha verdade, minha essência, meu ser-sonho, minha idealização, o conjunto de tudo o que eu era e sou) com aquela que está em pé, (a observadora, a dissecadora , o meu ser real de carne e osso, palpável) serviu para unificar num abraço e fundir as tantas mulheres que eu fui durante toda a minha vida. Na verdade, nesse conto, o “ eu-ela-nós”  serviu como a representação de todas as mulheres que somos durante nossa vida e a forma como desempenhamos todos  os papéis que o destino escreveu para nós.

Ainda sobre “Sonho kafkiano”, o que aprendeu com essa experiência vivida com seu inconsciente, com sua essência, por meio da escrita?

Na verdade, essa não foi minha única nem a primeira experiência, nesse sentido. Sou useira e vezeira em fazer isso. Estou sempre dialogando comigo mesma, fazendo confidências na frente do espelho, preferindo, às vezes, a minha companhia do que a dos outros. Sou muito introspectiva, estou sempre tentando me entender, me reorganizar internamente, buscando respostas para minhas dúvidas (e são tantas) em leituras, juntando meus pedaços, querendo saber qual é o meu papel e lugar neste mundo. Tenho um livro pronto, (certamente, ainda sofrerá modificações) que retrata bem isso. Quem sabe, um dia, ele vai para o prelo.

O que está sendo preparado para o lançamento?

Eu gostaria muito de fazer um lançamento presencial. É frustrante não poder dividir com a família, amigos, confrades e confreiras, convidados, esse momento tão especial. Receber abraços, autografar, conversar. A Fernanda Vizian, da Editora Paratexto, que publicou esse livro tão lindamente, e eu, estamos programando uma live para o lançamento virtual do livro. Faremos o anúncio da data através de nossas redes sociais e do blog da Editora Paratexto.

Sala de Leitura – Toda sexta-feira, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30).

“O gato preto e outros contos”

Autora: Maria Aparecida Rezende Lacerda

Editora: Paratexto (264 páginas)

 

 

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