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“Interessa-me aprender com o cinema de Chantal a ser outro homem”, afirma Luiz Fernando Medeiros

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Discípulo de Derrida, o professor Luiz Fernando Carvalho reflete sobre a obra da cineasta belga Chantal Akerman no livro “Corpos alterados, corpos alienados” – Foto Arquivo Pessoal

O querido Luiz Fernando Medeiros me disse, em entrevista concedida em janeiro de 2021, que a experiência dele como professor visitante na UFJF definiu o modo como ele agiria nos próximos anos. “Eu preciso escrever livros.” Foi o que ele confidenciou, e o verbo “precisar”, empregado com toda a intensidade por quem necessita de algo para continuar existindo, me marcou. Ele já tinha até a previsão de lançar de três a cinco títulos, e percebi que, diferentemente do que aconteceu com muitos, a pandemia que tomou conta do mundo não o paralisou. Ele produziu e continua produzindo ativamente.

Os livros são “reservas de pesquisa” para o ofício que ele desempenha, com muita paixão, na sala de aula. É por isso que ele precisa escrevê-los, e essa sua necessidade é reafirmada nesse nosso bate-papo de hoje. “Sempre me perguntam: ‘você só pensa em escrever livro?’. Só penso em escrever livros porque livro, para mim, não é uma prisão. É um ponto de partida para outros saltos.” Naquele dia em que conversamos, ele estava lançando “Retrato do outro/Lugar de conversa”. Agora, pouco mais de um ano depois, ele segue divulgando o novíssimo “Corpos alterados, corpos alienados: Reflexões sobre a obra cinematográfica de Chantal Akerman”, escrito em parceria com o professor e pesquisador suíço Serge Margel.

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E, como eu já havia contado nesta coluna, Luiz Fernando é afeito à conversa, o que justifica o fato de esse projeto ser fruto de uma conversa com Margel. Um diálogo que começou no finalzinho da década de 1980, quando os dois se conheceram, sob as bênçãos de Jacques Derrida, em um curso realizado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. E é sob a forma de um diálogo que se apresenta uma das partes mais ricas do livro: Luiz Fernando entrevista Margel, e o assunto é a obra de Akerman.

Cineasta e escritora belga morta em outubro de 2015, Chantal Akerman se tornou conhecida por fazer um cinema que foge aos padrões comerciais, sempre tendo como foco de seus trabalhos questões de identidade, alteridade e papéis sociais. “Ela dramatiza as fronteiras, as bordas, as margens. Os personagens estão sempre na fronteira a ponto de mudar de posição, a ponto de encontrar uma saída”, afirma, Luiz Fernando, contando que levou um ano para assistir aos filmes dela, analisá-los, entrevistar Margel e produzir o texto para o livro. Conta, ainda, que aprendeu muito durante todo esse processo, principalmente a ser um novo homem. E esse é um dos ensinamentos que ele nos traz na entrevista de hoje.

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Aproveito para divulgar que ele é o convidado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários para a Aula Inaugural, realizada na próxima quarta-feira (19), às 19h, no Anfiteatro da Faculdade de Letras. Na ocasião, ele e o professor Alexandre  Farias falarão sobre “O exercício da insistência e da paciência contra o fluxo veloz do consumo e da consumação”. O ponto de partida é a obra de Chantal Akerman.

Para adquirir “Corpos alterados, corpos alienados”, basta entrar em contato com o professor Luiz Fernando através do e-mail: luizf.medeiros@yahoo.com.br

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 Marisa Loures – Como surgiu esse diálogo com Sergel Margel e qual sua relação com Chantal Akerman?

Luiz Fernando – Isso tem a ver com minha aproximação com a filosofia. Sempre estou me aproximando da filosofia, a filosofia contemporânea, a filosofia de Jacques Derrida, que foi meu diretor de estudos por três anos. E lá na França, quando fiz o último curso com Derrida, também fiz o curso com Serge Margel, que é dez anos mais novos que eu, mas que também estava lá. Então, fiz um curso com ele sobre tragédia grega e, a partir daí, ele me convidou para um café e eu o convidei para vir ao Brasil, em 1989. E aí começou uma amizade que já dura mais de 30 anos. Ele foi o primeiro aluno de doutorado de Derrida. Ele veio no ano seguinte à UFF. Depois, veio várias vezes ao Brasil a meu convite e agora é professor visitante em Brasília. Já há quatro anos e recentemente ele me convidou para fazermos uma experiência de escrevermos sobre Chantal Akerman. Então, ficamos vendo os filmes dela sem parar. Levei um ano vendo os filmes e escrevendo sobre a Chantal. A ideia de um livro é minha, porque sempre acho que a gente precisa escrever livro. Sempre me perguntam: “você só pensa em escrever livro?”. Só penso em escrever livros porque livro, para mim, não é uma prisão. É um ponto de partida para outros saltos. Nesse sentido, escrever um livro sobre Chantal Akerman seria me aproximar do cinema pelo viés da filosofia, porque esse é um livro próximo às questões da filosofia. Por isso tem esse subtítulo: “reflexões”. Como é que a gente reage diante da obra de Chantal. A Chantal me pegou em vários níveis, porque ela tem a discussão fundamental para os dias de hoje, principalmente, para o Brasil, que é a situação do homem. Nos filmes de Chantal Akerman, o homem está sempre sendo questionado na sua certeza, na sua centralidade patriarcal, e isso me interessa muito. Eu não escrevi sobre Chantal do ponto de vista de um cara que quer falar sobre as mulheres. As mulheres sabem pensar a sua existência. E escrevo a partir de núcleos cinematográficos que envolvem a questão do homem. A mim me interessa aprender com o cinema de Chantal a ser outro homem, um outro parceiro, numa relação mais feliz, mais livre. Nesse sentido é que eu me engajei na escrita do meu texto. Eu escrevi um capítulo grande, de 19 páginas, e Serge escreveu dois. E aí eu inventei dentro do livro uma conversa entre mim e Serge Margel.

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– Por falar nisso, tenho certeza de que, essa entrevista foi uma conversa que vocês já tiveram várias vezes. Você é uma pessoa que adora conversar. De onde vem essa necessidade do diálogo?

Tudo no mundo é conversa, tudo é experiência com o sopro. Eu toco trompete, faço uma experiência de explosão do som através do sopro, e conversar é versar o sopro. É uma experiência radical e que eu levo para a sala de aula também, dou aula conversando com os alunos.Versar é conversar, é montar o ritmo, alterar o sopro normal e gerar intensidades. Nesse sentido, estou muito próximo do pensamento de Emanuele Coccia, um italiano que falou que a filosofia não é uma disciplina, é uma atmosfera. E é uma atmosfera que gera um saber erotizado pelo mundo, pela vivência, pela intensidade, pelo ritmo. Então, é nesse espírito que se aproximar do campo filosófico e ler o cinema de Chantal através da compreensão de uma filosofia enquanto atmosfera, aquilo que nos envolve, que nos dá prazer e que nos faz mudar de vida, nos transforma em outro.

– Você já disse que as discussões propostas por Chantal em relação ao homem são importantíssimas, principalmente, para o Brasil de hoje. O que mais nós, brasileiros, podemos tirar de proveito da obra dela?

No meu artigo, eu também me dediquei a analisar o último filme da Chantal, que é sobre a mãe dela. A Chantal coloca a mãe em vários filmes como um recurso estético. E depois ela faz um filme, chamado “Não é um filme caseiro”, em que ela filma a mãe e a interroga. Isso me encantou. Fiquei alucinado com a Chantal quebrando todas as fronteiras para falar sobre a mãe e com a mãe. A mãe era sobrevivente de um campo de concentração em Auschwitz, e tudo isso entra no filme. É de uma beleza extraordinária. A Chantal é conhecidíssima no mundo inteiro, e nós aqui estamos fazendo uma espécie de divulgação do trabalho dela. Antes, quem fez um extraordinário trabalho foi a Ivone Margulies, que tem uma tese de doutorado defendida nos Estados Unidos e que foi traduzida para o Brasil chamada “Nada acontece” e tem prefácio de Flora Süssekind, uma das maiores críticas literárias do Brasil. Uma obra-prima sobre a obra de Chantal. De alguma forma, não sosseguei enquanto não incorporei nesse livro uma homenagem à Flora Süssekind e à  Ivone Margulies. Mas eu acho que a obra de Chantal tem tudo a ver com um Brasil que se espera, um Brasil que precisa sair dessa posição dos personagens masculinos que estão nos filmes de Chantal. Precisamos, como brasileiros, prestar atenção nos filmes dela, principalmente os homens.

–  As obras de Chantal nos permite refletir sobre relacionamentos interpessoais, amor, sexo, morte…

– Eu recomendaria ao público que visse o filme “A prisioneira”, que é uma adaptação do ano 2000 de uma parte do romance francês de Proust (Marcel Proust). Ela tomou algumas liberdades e inventou um cinema a partir do Proust. É um filme terrível, mas muito bem filmado. É terrível porque é a história de um personagem que mora com a avó em um apartamento gigantesco e que tem uma namorada que se submete a ele. É um jogo muito duro, e ali, naquele filme, você acompanha todo um trabalho de enclausuramento. Daí o nome “A prisioneira. O enclausuramento dos corpos, motivado por um ciúme excessivo, por um controle do personagem. Acredito que, depois desse filme, o espectador vá encontrar uma reflexão e não vai querer repetir esse modelo estagnado de relacionamento.

– Que leitura você faz a respeito da maneira como o corpo é tratado na obra de Chantal Akerman? Aproveite para explicar o título do livro: “Corpos alterados, corpos alienados”.

Ela fez muitos filmes, cerca de 70 filmes. Fez filmes sobre a questão da mulher, do colonizado, do negro. Ela é muito dinâmica na sua cinematografia. Mas o título do livro se aproxima de fronteiras, de momentos em que as pessoas são alteradas pela chance, pela possibilidade de um encontro novo. Nesse sentido é que é alienado. O Alexandre (Faria) vai falar sobre um filme muito conhecido da Chantal, chamado “Jeanne Dielman”. É um filme sobre o corpo de uma mulher em movimento dentro de uma casa, sobre a educação do olhar do espectador para os movimentos dessa mulher dentro de casa, porque, normalmente, nós somos muito seduzidos e muito adestrados a perceber uma narrativa linear, que busca a ação e a conclusão. E nesse filme de Chantal, há, exatamente, uma quebra desse paradigma norte-americano, porque, para poder acompanhar aquela dinâmica de uma personagem dentro de sua casa, o espectador precisa reeducar o seu olhar para o novo ritmo, o ritmo que a câmera está mostrando. Outro filme que me interessa demais e sobre o qual eu vou falar no dia 19 é “Os encontros de Anna”. Anna é uma diretora de cinema que está exibindo seu filme em várias cidades da Europa. Na verdade, você nem sabe o título do filme dela, nem sabe o conteúdo do filme. O filme é sobre uma diretora, que chega de trem, entra no hotel e sai para encontrar os representantes de uma distribuidora de cinema. A partir daí, alguém do grupo sobe com ele para o hotel. Ela topa. E, a partir daí, o que acontece é extraordinário, porque ela interrompe a relação duas vezes e gera uma frustração imediata no parceiro. E essa frustração é de ordem linguística, porque ele reage de uma maneira clássica, se lamentando, sem parar para perceber o que aconteceu com ele, o que aconteceu com aquele encontro, o que fez aqueles dois corpos se alterarem, ou ele se alterar. Ele não se pergunta, ele vem com seu arquivo de respostas prontas e melancólicas. É genial essa cena, porque ela é um paradigma de um modelo de homem, um modelo existencial de resposta negativa à experiência feminina, experiência de um corpo feminino. E ela segue entrando e saindo de trem e sempre encontrando homens interessados em falar com ela, mas com o mesmo discurso, o mesmo ritmo, a banalidade da percepção. Até chegar ao momento em que ela, voltando para Paris, encontra com seu namorado fixo, e o cara é um estressado que sabe que ela tem que acordar no dia seguinte para continuar suas viagens como diretora em exibição do seu filme, e ele vive a angústia de só ter seis horas para estar com ela. E, nesse momento, ele diz: “Daqui a pouco, faremos amor”. Exatamente o que Chantal coloca na cena é que, da parte do homem, existe sempre o cálculo. E essa diretora já vinha de uma experiência com uma mulher italiana que despertou nela a conversa, o interesse, o ritmo da fala. Elas saíam e entravam em bares e fechavam, mas tinham interesse uma na outra em ouvir, escutar e falar. O cara está lá na cama. É uma cena terrível. Pede para ela se despir, mas ele não se despe. Ela sobe nua em cima dele. Essa cena é maravilhosa. E ela começa a acariciá-lo e percebe que ele está com febre. Então, ela sai, se levanta, vai à rua atrás de um remédio e volta. Isso em termos de cinema é maravilhoso, porque é um labirinto que ela percorre à noite em Paris, num tempo subjetivo. Quando ela volta, começa a fazer massagem no corpo dele. Mas, quando se aproxima das nádegas e enfia a mão, porque ela estava interessada em reanimá-lo para fazer amor com ele, ele então diz: “Não faça isso”. A partir daí, ela levanta, a cena é cortada, e ela já está de volta ao apartamento dela. Acho que essas cenas são paradigmáticas dos encontros e desencontros e da alienação a que está submetido o homem contemporâneo.

– Chantal é conhecida por fazer um cinema que foge dos padrões comerciais. Tanto é verdade, que o único filme que podemos encontrar neste circuito é “Um divã em Nova Iorque”, de 1984, com Juliette Binoche e William Hurt. Por que a obra dessa cineasta ficou conhecida como uma obra de resistência ao cinema comercial? E qual a importância desse cinema não comercial quando pensamos em questões sobre mitigação de disparidades no acesso à cultura e às artes no contexto da obra de Akerman?

Esta é a questão central que o Alexandre vai desenvolver no dia 19. A questão de como lidar com o tempo, porque nós somos muito viciados a querer tudo rápido, na velocidade do consumo. E a Chantal justamente trabalha com a lentidão, com uma nova educação do olhar, uma nova educação sentimental. Se você quer muito velocidade na percepção, você perde exatamente as nuances que o filme da Chantal está mostrando.

“Corpos alterados, corpos alienados”

Autores: Luiz Fernando Medeiros e Serge Margel

Aula Inaugural realizada pelo PPG Letras: Estudos Literários da UFJF: quarta-feira (19), às 19h, no Anfiteatro da Faculdade de Letras.

Luiz Fernando Medeiros e Alexandre  Farias falarão sobre “O exercício da insistência e da paciência contra o fluxo veloz do consumo e da consumação”. O ponto de partida é a obra de Chantal Akerman.

Para adquirir “Corpos alterados, corpos alienados”, basta entrar em contato com o professor Luiz Fernando através do e-mail: luizf.medeiros@yahoo.com.br

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