Júlia Medeiros apresenta-se, em seu livro de estreia, como neta de Esmeralda, a avó amarela, e Beatriz, a avó azul. Esta foi presenteada por Júlia com uma personagem inesquecível, levada aos palcos pelo grupo Ponto de Partida, a Temporina. Já Esmeralda ganhou uma história linda, a qual boa parte foi escrita enquanto a atriz e agora escritora, de São João del Rei, percorria algumas cidades do Maranhão e do Pará com a trupe de Barbacena. Júlia tentou resistir às recordações da infância enquanto escrevia. Queria fazer literatura a partir do que lhe era estranho. Mas é das lembranças de sua época de meninice, quando ia com a família aos domingos saborear o almoço preparado pela avó, que nasceu o “A avó amarela” (ÔZé Editora, 26 páginas), o melhor livro infantil de 2019 do Jabuti, um dos prêmios literários mais importantes do país.
“Quando sentei para escrever, eu não tinha pensado numa autoficção. Apaguei o primeiro parágrafo dezenas de vezes até me render. E, então, consegui encontrar o estranhamento na memória. Me dei por satisfeita e segui”, conta Júlia. Reconhecida pela Fundação nacional do Livro Infantil (FNLIJ) como autora revelação de 2019, a escritora viu seu primeiro livro publicado obter o selo de Altamente Recomendável, pela FNLIJ, ser agraciado com sua inclusão no Catálogo da FNLIJ para circular na feira de Literatura Infantil e Juvenil, realizada em Bolonha, ganhar o selo “White Ravens”, da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, do ano passado, além de ser contemplado com várias outras premiações e distinções. Aliás, ela segue, em março e abril de 2020, com “A avó amarela” para Paris, onde participa da Primavera Literária Brasileira, na Sorbonne Université, idealizada e realizada pelo escritor e professor Leonardo Tonus; Bolonha, na Feira de Bolonha; e Munique, onde passa pela Biblioteca Internacional da Juventude.
“Escrevo desde menina. Quando minha avó Beatriz – a azul – morreu, herdei alguns de seus caderninhos de anotações e fiquei surpresa ao encontrar, em um deles, os poemas que fiz aos oito anos. Talvez esse passado atue como um convite para eu escrever para crianças”, diz Júlia, que, em sua obra, certamente, não contemplou apenas os pequenos. Os mais crescidos e as mais crescidas, como eu, também se emocionam quando se deparam com a poesia do texto de Júlia Medeiros e com as ilustrações de Elisa Carareto.
Marisa Loures – Você é atriz e compositora. De que maneira sua atuação nos palcos contribuiu para a sua escrita?
Júlia Medeiros – Considero um privilégio poder unir os dois ofícios porque sinto que se complementam com muita eficiência. Quando escrevo, acesso fisicamente a personagem, tal como ocorre quando estou atuando, e essas sensações me orientam e provocam. Eu também leio em voz alta enquanto vou fazendo o texto, quase como se estivesse em cena, e isso me ajuda muito no ritmo, na pulsação e também na linguagem. Tem passagem que você sabe que não está dando certo e vai descobrir oralmente que é porque determinada construção precisa ser menos formal, ou porque a métrica está capenga. Ajuda na questão espacial também, na descrição, enfim, pra mim funciona muito.
“Eu sempre me perguntava porque é que, depois de já ter enveredado pelo caminho do teatro, a literatura continuava sobrevoando meus desejos. De alguma maneira, o Jabuti e os demais prêmios que o “Avó” recebeu me ajudaram a responder. Me senti muito encorajada a seguir, sobretudo nesse momento terrível em que as artes, a cultura e a memória do Brasil vêm sendo perversamente atacadas.”
– E sua estreia aconteceu com uma obra agraciada com o prêmio Jabuti. O que sente uma escritora que acabou de receber um dos prêmios mais importantes do país?
– Uma alegria imensa. Ser escritora era um sonho de infância, e eu sempre me perguntava porque é que, depois de já ter enveredado pelo caminho do teatro, a literatura continuava sobrevoando meus desejos. De alguma maneira, o Jabuti e os demais prêmios que o “Avó” recebeu me ajudaram a responder. Me senti muito encorajada a seguir, sobretudo nesse momento terrível em que as artes, a cultura e a memória do Brasil vêm sendo perversamente atacadas. Não é fácil começar uma carreira de escritora num país governado por um entusiasta da ignorância. Mas por isso mesmo é preciso criar, intervir, deixar pegadas. Não é hora de recuarmos dos nossos sonhos.
– A conquista do Jabuti e de todos os outros prêmios e distinções foi uma surpresa?
– Sim. Eu não pensava muito nisso, na verdade. Era a minha primeira publicação e eu já me sentia muito realizada, pois, como disse, desde menina queria ser escritora e nós tínhamos conseguido fazer o livro que desejávamos. Ao mesmo tempo, eu sei do imenso rigor técnico e criativo que tivemos – eu, Elisa e toda equipe da ÔZé Editora. Brinco que ganhar os prêmios e figurar nos rankings que você citou foi sorte de principiante, mas a verdade é que o Avó é fruto de muito trabalho, estudo, seriedade e envolvimento. No caso do Zeco, nosso editor, de uma experiência de mais de 30 anos. Às vezes dá a impressão de que um primeiro livro é só uma aventura, uma aposta, mas eu e Elisa fomos muito comprometidas e respeitosas no ingresso a esse ofício.
– É da sua infância que vieram suas referências literárias?
– As primeiras, certamente. Estudei no Catavento, em São João del Rei, que era uma escola que tinha a literatura no centro do processo pedagógico. A diretora, Sônia Haddad, de vez em quando surgia como Dona Benta para nos contar histórias. Éramos fascinados por ela e pelas feiras do livro que traziam para a cidade autores como Marilda Castanha e Leo Cunha, que eu tive o privilégio de ter como paraninfo na minha quarta-série e, agora, assinando a quarta capa do “Avó”. O contato com os autores foi outro aspecto importantíssimo para que a literatura me fisgasse. Depois, no final da minha juventude e entrada na fase adulta, tive a sorte de contar com o Ponto de Partida que tem, no coração da sua dramaturgia, o melhor da literatura brasileira moderna e contemporânea. Ali tive uma experiência epifânica com a palavra.
“Eu concordo plenamente com a Marina que, aliás, é uma maravilha de escritora, de pensadora, de mulher. Sua afirmação denuncia duas corrupções: a da arte, do ofício literário, que ela aponta; e outra, a da educação. Nenhuma pode ou deve ser usada para doutrinar. Pelo contrário: o papel de ambas é provocar indagações e investigações que permitam que a criança elabore sua subjetividade a fim de se tornar capaz de assimilar e criticar os valores que a cerca.”
– Quando a obra “Como carta de amor”, de Marina Colasanti, ganhou como melhor livro do ano do Jabuti, em 2014, a escritora disse que um dos problemas da literatura infantil é que “ela tem um pé amarrado na educação, como se ela servisse para carregar conhecimentos, princípios morais, como uma cápsula que tivesse outra coisa dentro. E isso envenena a literatura”. Quando decidiu escrever um livro infantil, chegou a pensar nessa questão?
– Eu concordo plenamente com a Marina que, aliás, é uma maravilha de escritora, de pensadora, de mulher. Sua afirmação denuncia duas corrupções: a da arte, do ofício literário, que ela aponta; e outra, a da educação. Nenhuma pode ou deve ser usada para doutrinar. Pelo contrário: o papel de ambas é provocar indagações e investigações que permitam que a criança elabore sua subjetividade a fim de se tornar capaz de assimilar e criticar os valores que a cerca. Na infância isso se dá o tempo todo, mas ocorre de forma especialmente valiosa na brincadeira e na arte, onde, através da representação, da metáfora, das alegorias, das negociações éticas e estéticas, as crianças podem acessar e interpretar melhor a si mesmas e à vida. Corromper este importantíssimo papel da literatura no desenvolvimento da intuição, do sensível, da capacidade de abstração, de compreensão e acolhimento das emoções, em detrimento de qualquer outro objetivo, é perverter e subestimar sua “serventia”. Isso acontece porque insistimos em tratar as crianças como objeto e não como sujeito e devíamos agradecer muito à boa literatura por lhes garantir essa dignidade.
– Quando li seu livro, tive a sensação de que tinha em mãos uma obra que não foi feita pensando só na criança como público-leitor…
– Quando eu fiz “A avó amarela”, eu não pensei se seria um texto para adultos ou crianças ou para os dois. Eu simplesmente contei a história com o maior grau de liberdade, diversão, profundidade, honestidade e experimentação estética que eu pude. Ele acabou ficando para todas as idades. De todos os ingredientes, considero a honestidade o mais fundamental para ampliar a abrangência de uma obra. As pessoas todas, mas sobretudo as crianças, se reconhecem muito naquilo que é verdadeiro.
– O que você espera alcançar com a sua escrita?
– Eu espero conseguir provocar incursões na intimidade e na fantasia, estes lugares que nos aprofundam e ampliam.
– Há novos projetos literários prontos?
Tenho um livro infantil pronto, mas ainda quero fazer ajustes. Também tenho um livro adulto começado e quero escrever para teatro. Mas não contei para ninguém. Guarda segredo, tá?
“A avó amarela”
Autora: Júlia Medeiros7
Ilustradora: Elisa Carareto
ÔZé Editora, 26 páginas.
Sala de Leitura – Sábado, às 10h15, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,3)