A TextoTerritório ainda não era uma editora quando os poetas e professores Oswaldo Martins e Alexandre Faria decidiram lançar um projeto que consistia em convidar os leitores para uma espécie de “debate poético virtual”. Explico, ou melhor, eles explicam. A ideia era que os leitores/autores escrevessem antiodes – “Texto em versos beirando a prosa, uma espécie de poema crônico (nada a ver com crônica poética), que eleja figura e/ou evento públicos merecedores de um comentário, nunca pelo aspecto particular ou privado (a Antiode jamais é pessoal), mas pelo que pode haver de icônico no tema e que permita metaforizar aspectos comportamentais dignos de nota crítica” – que pudessem suscitar uma discussão sobre “os limites éticos no mundo contemporâneo”.
A primeira antiode nasceu. Oswaldo Martins a escreveu para Gisele Bündchen, e ela foi publicada em 29 de março de 2009 no site textoterritorio.pro.br. Vieram outras em seguida, como, por exemplo, “Antiode para sara shiva”, “Antiode para marylin”, “Antiode para imelda marcos, com direito a papa doc” e “Antiode para ivete sangalo”. De Alexandre Faria, há “Antiode para paulo coelho”, “Antiode para johann sebastian bach”, “Antiode para maria da graça”, “Antiode para pedro bial” e outras mais. São dez anos de Antiodes, e 40 delas estão reunidas no livro “Antiodes” (138 páginas), disponível para venda no site da editora.
Na coluna de hoje, converso com Oswaldo. O autor, que sentiu na pele as garras do conservadorismo quando foi demitido de uma escola do Rio de Janeiro em 2009 por escrever poesias eróticas, reflete sobre como é ser poeta em um cenário de censura e intransigência. Mostra-nos que o deboche é o caminho mais acertado neste momento em que “juízes se arvoram em deuses”. E explica por que “Antiodes” é necessário e mereceu chegar às mãos dos leitores ainda nesta reta final de 2019. “Publicá-lo agora se dá pela necessidade de combate. Quando as estruturas culturais sofrem os ataques mais sórdidos, quando seus agentes são postos como párias sociais, quando o próprio sentido de cultura é atacado e achincalhado, quando os detentores do poder propõem uma destruição tanto mais maciça quanto mais à margem do processo civilizatório, é necessário não calar, é necessário reagir e construir elementos de reflexão que combatam a arbitrariedade, o descaso e a ânsia por assassinar a todos que divergem do núcleo central de um pensamento único e falseador.”
Marisa Loures – No prefácio do livro, você e Alexandre dizem que “Antiodes” é um livro laboratório. Por que “Antiodes”? E como é esse livro laboratório?
Oswaldo Martins – A palavra “antiodes” busca ressignificar um determinado lugar da poesia brasileira, que se demarca a partir do poema “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, recitado na Semana de 22. Não é a primeira vez, entretanto, que a ode aparece com esse sufixo de negação. Já João Cabral de Melo Neto a usou assim, num poema intitulado “Antiode”, que tem como subtítulo a seguinte direção de leitura “Contra a poesia dita profunda”. Os primeiros versos “Poesia te escrevia: / flor! Conhecendo / que és fezes. Fezes / como qualquer” fazem fronteira com outro poeta que, se não nomeia antiode, pergunta pela eficácia da poesia. Falo do Drummond de “A flor e a náusea” no qual diz que “o tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”. O conceito de ode entre os gregos constrói-se como poema lírico composto de estrofes de versos com medida igual, sempre de tom alegre e entusiástico. Além dos gregos, o verso longo das nossas “Antiodes” tem muito a ver com Whitman e a maneira como Pessoa o retoma em Álvaro de Campos. Ode triunfal, Ode marítima. As antiodes, por um lado, guardam com a definição grega algumas medidas como o tom alegre e entusiástico que se converte em ironia, sarcasmo e nenhum entusiasmo. Por outro lado, a medida igual se expande e ganha diversos ritmos, com versos mais longos que beiram o prosaico. Neste sentido, as antiodes são poemas que buscam interferir criticamente no corpo do que os poetas percebiam como realidade política, econômica, judicial, étnica e poética, bem como o lugar que os corpos ocupam no espaço público desta desastrada república. O livro é considerado um laboratório por dois motivos:
- Porque as antiodes nunca deixam de ser escritas e reescritas, já que a medida do pensamento crítico se atualiza sempre e necessita de quem dê uma deriva que não é a mesma da sociologia, da filosofia ou da história, por exemplo. A deriva do poético se instrumentaliza na percepção crítica que não busca a afirmativa verdadeira ou enganosa, mas a deriva do incômodo, do que, nas palavras de Luiz Costa Lima, “a literatura nunca oferece, nem ao autor nem ao leitor, um discurso redentor” e continua “a ficção literária deixa o leitor mais consciente de que não dispõe senão da provisória gratuidade do viver, sem que se confunda nem com o ‘deixa a vida me levar’ nem com a inautenticidade heideggeriana”, mediada pela reflexão poderosa das palavras que resvalam aqui e ali pelas arestas da realidade.
- Porque as antiodes nunca deixam de ser escritas e reescritas, a intenção dos autores demanda algumas derivas que a tomariam como discurso a ser retomado, reestruturado e reescrito dentro de possibilidades do dizer inesgotável que elas – as “Antiodes” – inauguram. Como disse certa vez Clarice Lispector, o resto é segredo.
– Para quem vocês escrevem essas “Antiodes”?
– Um livro não se escreve para alguém, para um grupo; um livro se escreve para todos. As antiodes devem ser lidas por quem quiser lê-las. Agora, a intenção é a de incomodar, cutucar, tirar o leitor de seu conforto, propor que ele saia da casca e principalmente perceba que não há uma fórmula fixa do escrever poesia, que, por exemplo, as anáforas, tão comuns na poesia contemporânea, não são ainda poesia; que a vida pessoal ou de pertencimento a um grupo não é ainda poesia; que poesia só é quando pede a percepção metafórica de um não lugar, para que possa preencher todos os lugares e principalmente quando faz com que os lugares de pertencimento sejam bagunçados, triturados para que se possa percebê-los com maior eficácia, luta e resistência. O “Antiodes” por sua amplitude e criticidade é um livro para todos.
– Partindo de suas “Lições de poesia”, faço uma leitura de que olhar para a sociedade atual com deboche é o caminho mais acertado neste momento em que “juízes se arvoram em deuses”. Essa é uma das possibilidades de resistência?
– Sim. Como está escrito lá, é preciso rir do Moro e de seus comparsas. A dinâmica do riso, do deboche é um dos instrumentos mais eficazes para tirar as pessoas de suas certezas e convicções. Em outra parte do prefácio, afirmamos que a atenção à linguagem é parte fundamental da resistência. Apenas dois exemplos, que remetem a um uso da linguagem muito comum ao nosso cotidiano. Refiro-me ao emprego do demonstrativo este/esse antes de país e às afirmações que vem do passado colonialista, no mito da grandiosidade brasileira. O este/esse é uma forma de atualizar as percepções colonialistas que o “em ritmo de país grande” gigante desperto” e outras semelhantes mostram não termos avançado na defesa dos direitos do país. O pré-sal é um correlato deste exemplo. Fincou-se na afirmação da riqueza da terra grande e esqueceu-se de protegê-lo contra a sanha dos que, por vício, estupidez ou ganância, arquitetaram a destruição do que se intentava proteger política e economicamente. Como as leis não bastam, a consciência de pertencimento das pessoas com o republicanismo, ao não ter sido construída, fragilizou-se e abriu espaço para que mais uma vez a espoliação se desse. Por isso o este/esse atua apenas como discurso e não consegue deslocar a percepção para os atos necessários da resistência. É, portanto, necessário rir da nacionalidade que assim se construiu e se constrói. É preciso rir do mito do Brasil grande, como riu Mário de Andrade em “Macunaíma”, como riu Oswald de Andrade, em seus poemas mais lúcidos.
– Alexandre afirma que vocês estão “na luta pela liberdade de pensamento e de expressão, no combate ao cinismo, à cretinice e à hipocrisia desses tempos para os quais o preconceito, a intransigência, a ignorância e o medo forraram a cama”. Nesse combate, é preciso que o poeta contemporâneo seja perigoso como foi Dante: “uma força respeitável frente às demais forças sociais”, como escreveu Mário Faustino?
– Em primeiro lugar, é preciso alertar que a poesia e por conseguinte o poeta nunca se apresentou como um discurso de voz unívoca. Há poetas de excelente qualidade que nunca se ligaram à questão política ou mesmo pública. Desta forma, o que qualifica um texto como texto de qualidade não é necessariamente aquilo que diz, mas um certo dizer que nos traz algum desconforto, seja de ordem histórica, seja de ordem metafísica. Não é por aí que se deve ler o “Antiodes” ou qualquer poesia. Não é a percepção de uma justiça no sentido do imediato, mas a justiça no sentido do que ela representa, no que ela forja como padrão e que, por ser um padrão, torna-se um falar desprovido de sentido. É claro que as antiodes se posicionam frente aos conceitos do mundo e da contemporaneidade numa perspectiva muito própria. Têm em vista os acontecimentos que não nos entediam e deles fazem ponto de partida para a construção das questões que levantamos. A quebra de cintura de uma pessoa passando pela catraca de uma condução é tanto mais bela quanto menos bela é a evolução de uma modelo nas passarelas da moda. O poeta deve estar atento a essas nuances. Só assim o poeta pode ser perigoso. Em segundo lugar, a poesia nunca se destacou por ser um discurso hegemônico, estando sempre a serviço de algum outro discurso. Seja o do poder, seja o do sujeito, seja o da história e de seus discursos variantes, seja o religioso. Quando Mário Faustino diz que Dante foi “uma força respeitável frente às demais forças sociais” parece-nos que um significado mais denso aí se explicita, pois só se colocando lado a lado em relação aos discursos das outras forças discursivas pode a poesia adquirir a qualidade que se abeira do perigoso, já que, ao se situando como um discurso válido e de certa forma pragmático, será capaz não só de construir formulações novas e desconstruir os lugares comuns das certezas sempiternas, com as quais as sociedades se arquitetaram. Os poemas monstruosos edificam uma nova forma de ver o mundo, como buscam os poemas deste novo livro. O poeta deve ser um monstro preenchido de sentidos, como são as antiodes.
“Há também o autoritarismo formado pelas panelinhas literárias; outro formado pelos iniciados; que propugnam um mesmo falar, um repetitório danado e que não leva o leitor a lugar nenhum. Combater tal autoritarismo está em combater os lugares comuns, em não se curvar aos aplausos, em não se permitir midiática no seu tempo e para além do próprio tempo.”
– Vocês revelam que os poemas do livro também “buscam conscientemente interferir no que também se poderia chamar de uma certa forma de autoritarismo quanto à poesia”. O que vocês consideram como autoritarismo no que se refere à poesia e por que se faz necessário driblá-lo?
– O autoritarismo referente à poesia está ligado à imposição do gosto. Se se ler certa poesia romântica, certa preferência por um tipo de beleza, certa afirmação a partir dos automóveis, certa poesia contemporânea, com sua velocidade de corrida de fórmula 1, a imposição autoritária do gosto se expressa quase que como uma totalidade. Há também o autoritarismo formado pelas panelinhas literárias; outro formado pelos iniciados; que propugnam um mesmo falar, um repetitório danado e que não leva o leitor a lugar nenhum. Combater tal autoritarismo está em combater os lugares comuns, em não se curvar aos aplausos, em não se permitir midiática no seu tempo e para além do próprio tempo. Em outras palavras, driblar o autoritarismo é se colocar abaixo da escala social e ser lúcido, de uma lucidez ao ponto do oco e encontrar, nas brechas dos discursos persuasivos, um antidiscurso, uma antiode.
“Ser poeta é ser poeta principalmente neste cenário. Se o raciocínio que vimos fazendo estiver correto, o combate ao obscurantismo, às censuras e à intransigência, ao já dito e reafirmado é a matéria sobre a qual o falar do poético se coloca. A presença da propaganda comercial ou institucional faz com que todos busquem a mesma cara, seja em tempos de autoritarismo seja de relativa liberdade. É desta cara que os poemas devem se distanciar ou se aproximar para que antropofagicamente as devorem. O autoritarismo se anuncia antes mesmo de sua propagação no atual governo, mostrava suas garras em inúmeras ações.”
– Em 2008, atuando como professor, você foi demitido de uma escola no Rio de Janeiro por escrever poesias eróticas. Isso aconteceu um ano antes de vocês iniciarem o projeto das “Antiodes”. Esse episódio é só mais um entre tantos outros que mostram que o conservadorismo e todo esse quadro de censura e intransigência que se vê hoje no país já davam sinais do que estava por vir. Como ser poeta neste cenário?
– Ser poeta é ser poeta principalmente neste cenário. Se o raciocínio que vimos fazendo estiver correto, o combate ao obscurantismo, às censuras e à intransigência, ao já dito e reafirmado é a matéria sobre a qual o falar do poético se coloca. A presença da propaganda comercial ou institucional faz com que todos busquem a mesma cara, seja em tempos de autoritarismo seja de relativa liberdade. É desta cara que os poemas devem se distanciar ou se aproximar para que antropofagicamente as devorem. O autoritarismo se anuncia antes mesmo de sua propagação no atual governo, mostrava suas garras em inúmeras ações. O exemplo da escola que me demite por causa de meus poemas é emblemático por acontecer mais próximo de nossa classe, mas que não é o único nem um caso isolado. São tão mais assustadores – que perder o emprego – os assassinatos cometidos na Amazônia, o assassinato do índio pataxó, da empregada doméstica que o ultraconservadorismo identificou com uma puta, o caso da moça que é vaiada na universidade por suas roupas, em plena vigência de um regime democrático. O autoritarismo odeia o sexo e as formas mais alegres e prazerosas em que ele se põe. A demissão tem a ver com isso, os assassinatos também. Escrever é perceber a que lugar estas ações nos levavam. O ano de 2009 é emblemático neste sentido e por ser emblemático deveria como se deu de fato produzir sentidos que as combatessem.
– Quando vocês começaram o projeto não faziam profecias (como fizeram questão de enfatizar no livro), enxergavam o óbvio que estava por vir (o avanço do conservadorismo no Brasil). As “Antiodes” são o início de um projeto que vai se desdobrar em outros caminhos. O que os olhos do poeta veem para os próximos tempos?
– O que os olhos do poeta veem para os próximos tempos é a necessidade de reflexão cada vez mais em abismo, para poder dar conta da treva que se anuncia e se instala. Treva que é um misto de intolerância de classe, intolerância religiosa, intolerância racial e intolerância de gênero. Como os olhos dos poetas se negam à adivinhação demiúrgica , resta a eles a capacidade de refletir e não se entregar, resistir para não se entregar ao desespero e ainda permitir o riso sarcástico sobre os algozes.
“Antiodes”
Autores: Alexandre Faria e Oswaldo Martins
Editora: TextoTerritório (138 páginas)
Livros à venda em textoterritorio.pro.br