Graça Graúna é professora, escritora e pesquisadora dos direitos humanos. Sobretudo, é filha de Tupã, Potiguara. “Nasci no Agreste do Rio Grande do Norte, em São José do Campestre; uma cidadezinha a 64 km (em linha reta) da cidade de Canguaretama, onde vivem os parentes da Aldeia Catu”, conta ela, buscando em suas lembranças o nascimento de sua escrita. “Tenho memória das leituras de mundo que eu escrevia num diário, quando adolescente. Estudei no Colégio das Neves, em Natal (RN): um colégio de freira, onde as poucas colegas de internato (a quem eu mostrava acanhadamente os meus escritos) diziam que eu escrevia poesia misturada com história. Nunca me esqueci dessa observação, e foi, assim, que eu dei conta da necessidade de botar no papel o que eu já intuía. É que aprendi desde cedo que a intuição é a mensageira da alma, como dizem os antigos.”
Dona de uma produção que inclui poesias, crônicas, infanto-juvenis e ensaios, a doutora em Letras e docente da Universidade Federal de Pernambuco é convidada do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Juiz de Fora, para ministrar a palestra “Pelos caminhos da Ameríndia em prosa e verso”. O encontro está marcado para esta terça-feira (06), às 18h30, na Sala de Defesa do PPG Letras.
“Acredito, com todas as forças do meu ser, que os caminhos de Ameríndia são caminhos de resistência. Por esse caminho, encontro parentes indígenas, amigos, guerreiros e tantas outras pessoas que buscam um lugar no mundo e lutam por dias melhores. Nesse caminho, percebo que as utopias não se perderam, isto é, elas se materializam toda vez que as pessoas lutam contra o preconceito, entre outras formas de violência; lutam pelo direito de construir seu próprio relato, sua literatura (em prosa ou em verso, oral ou escrita, como quer a nossa literatura indígena). Esses caminhos também se revelam nos sonhos que não se sonha só, como sugere Quixote/Cervantes. São sagrados os caminhos que revelam a sabedoria indígena e xamãnica a nos alertar sobre a importância de amar e respeitar a nossa mãe terra. Nesta perspectiva, também diria o líder e escritor Ailton Krenak: amar e respeitar nosso avô: o rio”.
Entre seus livros publicados, estão “Flor da mata” (2014), “Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil” (2013), “Criaturas de Ñanderu” (2010), “Tear da palavra (2007)”, “Tessituras da terra (2001)” e “Canto mestizo (1999)”. Para breve, planeja o lançamento de “Cartas de Ameríndia”. E aos que desejam acompanhar suas reflexões acerca de literatura, ela ainda mantém os blogs “art’palavra” (ggrauna.blogspot.com) e “Tecido de vozes” (tecidodevozes.blogspot.com).Graça Graúna é a convidada do Sala de Leitura de hoje. Antes de começar nosso bate-papo, deixo aqui os versos em que ela, poeticamente, nos traz as razões que movem sua escrita. “Ao escrever,/ dou conta da ancestralidade, /do caminho de volta,/ do meu lugar no mundo”
Marisa Loures – Em uma entrevista publicada na revista Palimpsesto, da UERJ, em 2015, você disse o seguinte: “Infelizmente, também ocorre no meio universitário, em geral, nos depararmos com pessoas que trazem uma visão estereotipada acerca do indígena. Até compreendo que isto ainda aconteça, pois o/a estudante, em geral, ainda carrega os ‘ensinamentos’ de uma educação bancária.” Quatro anos depois dessa declaração, sente que o meio universitário e a população em geral começaram a ver o indígena de outra maneira? Ou os “equívocos de Colombo ainda perduram”?
Graça Graúna – Não sou pessimista, mas infelizmente torno a dizer que os equívocos de Colombo perduram. Os maus exemplos estão por aí, mascarados nos cortes de verbas na Educação e no incentivo ao porte e à posse de armas de fogo à população em geral. Apesar dessas barreiras e dos escassos estudos sobre a Lei 11.645/08, que defende o estudo da história e da cultura dos povos indígenas no Brasil, tenho observado que a população universitária vem, aos poucos, demonstrando mais interesse em conhecer mais de perto a história dos primeiros habitantes do nosso país. A prova desse interesse remete aos inúmeros trabalhos de conclusão de curso (TCC), dissertações, teses, ensaios e artigos, entre outras produções científicas que defendemos diferentes saberes dos povos originários no Brasil e em outras partes do mundo. Sigamos, então, nesse ritmo; erguendo as nossas mãos e juntando as nossas vozes por uma educação libertadora e em defesa das nossas origens.
– Sem dúvida, a Academia está mais aberta, hoje, à chamada literatura periférica, como a indígena. O apoio dela é importante para a luta de vocês?
– Nunca é demais repetir que as produções científicas em torno da nossa Literatura Indígena demonstram, claramente, o reconhecimento da Academia acerca dos saberes oriundos dos nossos ancestrais. Mas nem tudo são flores. Devido aos cortes de verbas na área da Educação, muitos estudantes e professores indígenas encontram dificuldades (gastos com passagens, hospedagens, alimentação e outras necessidades) para continuar na universidade, realizar ou participar de eventos relacionados a estudos literários. Mesmo, assim, algumas universidades driblam os desafios e promovem encontros voltados à chamada literatura periférica, na qual a nossa literatura está inserida. Ao receber o convite da UFJF para deslocar-me do Nordeste até Juiz de Fora – a fim de fazer parte de uma banca de Mestrado, de reunir-me com alunos de Pós-Graduação junto ao Grupo de Estudos Literários e realizar também uma conferência sobre literatura de autoria indígena – significa muito para mim e creio que seja importante também para o movimento de escritores indígenas. Movimento este que vem crescendo em vários aspectos: na realização de encontros literários de abrangência nacional e internacional e na publicação de obras escritas por homens e mulheres indígenas de diferentes etnias.
“Costumo dizer que não existe sociedade sem conflito. Posso dizer o mesmo com relação aos meus escritos. Às vezes, me perguntam se sou índia mesmo, e por qual motivo meus escritos não trazem um final feliz, embora pareçam românticos. Quanto a minha identidade, respondo que não sou índia; sou Potiguara, filha de Tupã. Sobre os meus poemas, confesso que pode até haver alguma relação com a estética romântica, mas o que eu procuro enfatizar quando escrevo é o direito de ‘ser o que sou’ (indígena) e ‘deixar que o outro também seja’, como diria o líder e escritor Marcos Terena.”
– E o racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? De que maneira?
– Costumo dizer que não existe sociedade sem conflito. Posso dizer o mesmo com relação aos meus escritos. Às vezes, me perguntam se sou índia mesmo, e por qual motivo meus escritos não trazem um final feliz, embora pareçam românticos. Quanto a minha identidade, respondo que não sou índia; sou Potiguara, filha de Tupã. Sobre os meus poemas, confesso que pode até haver alguma relação com a estética romântica, mas o que eu procuro enfatizar quando escrevo é o direito de “ser o que sou” (indígena) e “deixar que o outro também seja”, como diria o líder e escritor Marcos Terena. Fico meio sem jeito de falar sobre o que escrevo. Assim mesmo, peço licença para recomendar uma leitura do pensamento crítico de Rita Godet e Carlos Augusto de Melo, entre outros estudiosos no campo da literatura comparada. Eles vêm, generosamente, estudando meu escreviver, especificamente em “Canto mestizo” e “Tecituras da terra”, entre outros livros de minha autoria.
“Essa onda de críticas direcionadas a Paulo Freire é infundada. Muitas pessoas se incomodam pelo que ele é: nordestino, cidadão do mundo, educador, visionário, xamã.”
– Paulo Freire é um dos autores que te inspiram. Como vê essa onda de críticas direcionadas a ele nos dias de hoje? Por que ele está incomodando tanto?
– Essa onda de críticas direcionadas a Paulo Freire é infundada. Muitas pessoas se incomodam pelo que ele é: nordestino, cidadão do mundo, educador, visionário, xamã. Gostaria de completar esta resposta com o poema que eu dedico a Paulo Freire. “Poética da autonomia” é o título desse poema que escrevi em 2007 e o declamei no VI Colóquio Internacional Paulo Freire, no Centro de Convenções da UFPE:
I
Minha voz tem outra semântica,
outra música. Neste ritmo,
falo da resistência
da indignação
da justa ira dos traídos
e dos enganados
II
Apesar de tudo,
jamais temer de apostar
na esperança
na palavra do outro
na seriedade
na amorosidade
na luta em que se aprende
o valor e a importância da raiva.
Jamais temer de apostar demasiado
na liberdade
III
Apesar de tudo,
cabe o direito de sonhar
de estar no mundo
a favor da esperança
que nos anima
(Graça Graúna)
“Creio que, enquanto houver poesia, haverá esperança, haverá manhã.”
– Além de professora e escritora, você também é pesquisadora na área dos direitos humanos. Acha que a sociedade brasileira tem pensado mais na necessidade de haver um diálogo entre literatura, educação e direitos humanos?
– No período 2006/2009, por meio de um edital do MEC, sobre Educação e Direitos Humanos, apresentei o Projeto “Literatura e direitos humanos”, junto à Universidade de Pernambuco (UPE), onde sou Professora Adjunta. Em Pernambuco, a UPE foi a única Instituição de Ensino contemplada ao receber recursos para levar o projeto a 22 municípios do Agreste Meridional, envolvendo mais de 20 mil pessoas (alunos, professores e o entorno das escolas públicas que participaram do projeto). Foi uma experiência das melhores em minha vida, pois o objetivo de realizar diálogo por meio da literatura, especificamente por meio da poesia, implica uma tarefa das mais difíceis, mas não impossível. Acredito que o diálogo pode ser a chave; mas isso não basta. Penso, imagino, escrevo o fato de que a poesia pode mudar o mundo. Creio que, enquanto houver poesia, haverá esperança, haverá manhã, como sugere o seguinte fragmento do poema “Os estatutos do homem”, de Thiago de Melo: “Fica decretado que,/a partir deste instante,/ haverá girassóis em todas as janelas,/ que os girassóis terão direito/ a abrir-se dentro da sombra;/e que as janelas devem permanecer/ o dia inteiro, abertas para o verde/ onde cresce a esperança.”
– Um dos grandes desafios no Brasil é a formação do leitor. Você também é autora de livros infanto-juvenis. Inclusive, sua dissertação de mestrado em letras é “O imaginário dos povos indígenas na literatura infantil”. Como o povo indígena é trabalhado na literatura infantil e como vê a maneira como a literatura indígena é tratada no ambiente escolar?
– Para escrever a minha dissertação de mestrado, estudei algumas obras de autores brasileiros não indígenas. Especificamente, propus analisar as obras que abordassem temas voltados à história e à cultura indígena. Pesquisei dezenas e dezenas de livros direcionados ao chamado público infantil e juvenil. Foi uma tarefa árdua. Ao longo da pesquisa, tive receio de não encontrar obras que tratassem do tema com o devido respeito e amor ao outro, com criticidade, criatividade e senso estético. Na maioria dos livros pesquisados, me deparei com uma enxurrada de mentiras, descasos, bullying e outros absurdos escritos contra os povos indígenas. Felizmente, encontrei em quatro autores o prazer da leitura e o aguçado senso de altruísmo, o que me levou a estudar a história e a cultura indígenas por meio das lendas amazônicas, adaptadas e ilustradas por Ciça Fittipaldi; das narrativas sobre o povo Krenak, escritas por Renato da Silveira; da obra “Momeucáua”(lenda), de Aline Bittencourt, e o mito da “Terra sem males”, na visão de Luiz Galdino. Embora sejam raras as obras que denunciam os descasos contra os povos originários, espera-se que as escolas públicas – por meio das novas tecnologias, por exemplo – criem ou desenvolvam projetos interdisciplinares, focalizando o papel da literatura indígena na formação do leitor.
– Em entrevista ao jornal O Globo, publicada neste último sábado, o líder indígena Davi Kopenawa disse estar preocupado com o que ouve de Brasília e com o que vê, diariamente, em sua terra. Ele e seu povo não querem a mineração em terra indígena. Essa questão também tem te preocupado? Qual o seu maior medo?
– Li, no Blog da Cidadania, a entrevista do parente Davi Kopenawa (líder e xamãIanomami). A situação dos ianomâmi e dos povos indígenas em geral é muito preocupante. São constantes os massacres sofridos pelos indígenas, e, a cada dia, só aumenta o quadro de doenças, de poluição dos rios e de violência. A situação dos Ianomami afeta profundamente a todos os indígenas, pois somos todos parentes. Quisera, por meio da poesia ou da contação de histórias, que a nossa palavra transformasse a guerra em paz; a tristeza em alegria; a doença em saúde; a morte dos rios em um largo e profundo caminho de águas claras. Mas a ganância da sociedade dominante é tão grande! Confesso que tenho muito medo do projeto de instalações de “serras peladas” pelo Brasil; tenho medo, pois, quanto mais os gananciosos invadem os sagrados territórios indígenas, a queda do céu mais se aproxima.
“Espero que os leitores acolham o que os nossos sábios intuem desde sempre: que a palavra indígena sempre existiu; existirá sempre.”
– O que você espera provocar no leitor com sua obra?
– No campo dos estudos literários, busco na literatura comparada um dos caminhos para divulgar a nossa Literatura Indígena no Brasil e noutras partes do mundo. Quanto aos poemas e crônicas de minha lavra, espero que os leitores acolham o que os nossos sábios intuem desde sempre: que a palavra indígena sempre existiu; existirá sempre.
Sala de Leitura
Sábado, às 10h15, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010).
Conferência “Pelos caminhos da Ameríndia em prosa e verso”
6 de agosto, às 18h30, na Sala de Defesa do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFJF.