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Fernanda Vivacqua: “Escrevo porque quero criar esse mundo, e estar nele, ou tê-lo em mim”

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Fernanda Vivacqua lança edição bilingue de “María Celia” e a plaquete “Para os homens que não amam as mulheres”, publicada pelo selo Capiranhas do Parahybuna, projeto que surge para fortalecer a existência da mulher na cena literária – Foto Divulgação

Na apresentação de “María Celia” (Edições Macondo), a escritora e professora Prisca Agustoni diz que “cada poeta que surge com uma voz firme e marcante é a natureza toda que se alegra.” O ano é 2016. É o livro de estreia de Fernanda Vivacqua. Dois anos depois, a publicação ganha formato bilíngue português/espanhol, além de cinco poemas inéditos. A nova edição surge paralelamente à criação do selo Capiranhas do Parahybuna, pelo qual Fernanda lança a plaquete “Para os homens que não amam as mulheres”. O selo também é inaugurado com as plaquetes “Mamafesto – Parte I”, de Anelise Freitas, “Caderninho vermelho”, de Marcela Batista, e “Mecânica de nuvens aplicada”, de Laura Assis.

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“Além de poetas da cidade, nós trazemos nossas experiências de editoração, que são diversas, o que acredito ser muito rico. A ideia surgiu por entendermos que o espaço de produção poética, e o que fala sobre ela, é ainda muito machista, oprimindo e assediando as poetas, editoras, produtoras, e outras mulheres, cis e trans, que compõem a cena. Os efeitos, para nós, são explícitos: as mulheres param de escrever, adoecem, se ausentam da cena. Nós conhecemos essas histórias e convivemos convenientemente com agressores poetas, por exemplo. Mas muitas vezes, apesar de saber da narrativa, a vítima não está mais lá”, dispara Fernanda, destacando que um selo dessa natureza é urgente. Ele ajuda a fortalecer a existência da mulher na cena  não só como poetas, mas também como editoras.

“É importante ocupar todos os espaços de produção, criar redes para que possamos ser as artistas que somos, em nossa potencialidade. Claro, o Capiranhas não responde a isso tudo de pronto, como uma solução fácil ou global. É uma experiência possível, e o lançamento das quatro plaquetes, uma de cada editora do selo, para mim, demonstra ser não apenas possível, como também necessária e, em algum sentido, mágica, porque vem transformando nossos corpos, afetos e poéticas.”

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Nascida no Rio de Janeiro, mas criada em Juiz de Fora, foi na UFJF que Fernanda fez a faculdade de Letras. Lá, é onde ela também está em processo de conclusão do mestrado em Estudos Literários. Quis saber quando ela se percebeu poeta. Lanço a pergunta que abre esse nosso bate-papo. Mas, antes disso, um pouco de sua poesia.

“E eu também quero falar/ sobre a minha avó e os seus/ pés atravessando o corredor/ estirados na horizontal, apontam/ da sala para a cozinha, apontam/ para um outro lugar/ de onde eu não vim apontam/ os pés atravessados de minha/ avó/ e quando digo que/ eu também quero falar/ sobre a minha avó e as suas/ unhas vermelhas/ você pensa na sua avó/ que pode ser apenas/ o cheiro da comida a fala/ doce dos dias de domingo/ ou todos os cacos da ausência/ solapada na garganta”.

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Marisa Loures – Em que momento da vida você se percebeu poeta?

Fernanda Vivacqua – Eu sempre gostei de escrever, de escrever qualquer coisa. E acho que, por muito tempo, eu escrevia mais do que lia, hábito com o qual sou mais rebelde – por, às vezes, ter ritmos de leitura muito distintos ao longo do ano, por exemplo. Mas escrever era uma relação imediata de prazer, eu gosto de fazer isso, até hoje. Em determinado momento, depois da convivência com amigos da Faculdade de Letras, eu me fiz uma pergunta importante: sobre o que eu queria falar? Acho que, a partir daquele momento, eu começo a pensar em um projeto poético, e, de alguma forma, que estou aprendendo, inaugurei outra relação com a linguagem e a minha língua. Sem isso, não me diria poeta.

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– Segundo Prisca Agustoni, na apresentação da obra, “cada livro de poemas tem um mundo dentro, que se revela em pequenas cintilações ou em sequências imagéticas e sensoriais que compõem o ritmo e o teor de verdade da palavra que serve para expressá-lo.” Como é o mundo de “María Celia”?

O universo do “María Celia” é atravessado por muitas mulheres, próximas ou distantes, escancaradas ou elípticas. Essa é uma observação que já ouvi de muitas pessoas e, particularmente, concordo. Mas, como leitora que também sou do livro, sempre me pego pensando até que ponto as imagens do poema não são contornadas por aquilo [ou aquele] que falta – o não feminino ou o que falta do feminino. Não sei ao certo o que é, e acho que a segunda edição abre possibilidade para outros olhares que talvez me ajudem a pensar sobre isso. Acredito que outro elemento, não menos importante, seja a procura por um ritmo, capaz de afetar, de alguma maneira, quem ouve, ou lê, os poemas. E, quando a Prisca diz, em sua apresentação, que “cada livro de poemas tem um mundo dentro”, me faz pensar nesses elementos que disse. Isso é, por um lado, o “María Celia”, como livro de estreia, aponta para um certo sentido de início (a estreia), um mundo inaugural, a busca de um ritmo, um estilo, imagens e tons, cintilações de uma poética. Por outro, o livro é um mundo em si, completo, e tenho muita afeição a essa perspectiva. Por isso, apesar de estreia, acredito que o “María Celia” tente afirmar seu próprio mundo, sem depender da minha escrita a posteriori para existir, em plenitude. Eu não sei se consegue, mas acho que é uma tentativa honesta.

“Quero dizer, não acredito que podemos nos refugiar nos poemas, como uma forma de nos sentirmos isentos de responsabilidade política e social, por exemplo. Por outro lado, acredito que o poema seja um outro mundo possível, próprio, onde podemos habitar.”

– Na apresentação em espanhol, Gabriela Luzzi afirma que “nós escrevemos porque precisamos de um mundo mais habitável.”.  É por  isso que você escreve?

Essa é uma pergunta difícil. Porque não acredito que a poesia, ou qualquer arte, substitua ‘o mundo’. Quero dizer, não acredito que podemos nos refugiar nos poemas, como uma forma de nos sentirmos isentos de responsabilidade política e social, por exemplo. Por outro lado, acredito que o poema seja um outro mundo possível, próprio, onde podemos habitar, pensando com a Gabi Luzzi. É como uma viagem, é como se a gente de verdade nunca voltasse de uma viagem, porque já somos outro. Então é sobre habitar esse mundo um pouco como esse outro espaço, do qual não somos observadores, mas partes. Eu sou parte do mundo dos meus poemas e, hoje, eles são partes de mim, do meu corpo, da minha forma de estar no mundo. Então, escrevo porque quero criar esse mundo, e estar nele, ou tê-lo em mim.

– Em um dos poemas, você diz assim: “e eu também quero falar/ sobre a minha avó/ e os seus pés atravessando o corredor”. Você conclui esse poema da seguinte maneira: “quando preciso falar sobre a/ minha avó e seu nome/ escrevo no espelho de batom/ para não me esquecer/ María Celia”.  Ali e em outros textos, senti que falar sobre suas lembranças era uma necessidade muito forte, como se fosse indispensável para que a poeta não perdesse suas memórias…

Gosto muito de como as memórias se organizam na nossa cabeça: se você tenta muito se lembrar de um fato antigo, por muito tempo, sua imaginação preenche as lacunas que a dimensão do sentido pede. Eu tenho essa experiência, ao tentar lembrar da minha infância. Já descobri muitas coisas que sempre achei que tivessem me ocorrido, e eram falsas, produzidas pela minha imaginação. É essa memória criativa que tem me intrigado e mobilizado, porque ela, me parece, se aproxima da própria ideia de poesia. E aí, sobre a memória, penso, não importam os fatos exatos, mas o que criamos a partir deles.

– “María Celia” está ganhando uma segunda edição, agora bilíngue: português/ espanhol. Por que esse projeto agora?

Quando fizemos a primeira edição, em dezembro de 2016, a tiragem foi pequena e esgotou rápido. O tempo passou e eu não queria apenas fazer a reimpressão, porque, de alguma forma, eu já via o “María Celia” em outro lugar. E eu também sou outra. Uma das coisas que aconteceram, nesse caminho, foi o projeto da Anelise Freitas, que se dispôs a traduzir o livro para o espanhol, em específico para a variante rioplatense. Nós duas vivemos esse processo de forma bastante intensa, e no meio dele a Marcela Batistase somou, revisando a tradução. Eu não sou hispanohablante, então para mim foi uma aproximação muito maravilhosa, pois me aproximei da língua de uma forma muito especial. Além disso, fazia todo sentido o livro sair pela Edições Macondo, editora que sempre tratou meu livro com todo carinho, lançando duas edições cuidadosas e lindas – diz a autora apaixonada. Agora em outubro, eu, Anelise e Marcela estaremos no Festival latino-americano de poesia Bahía Blanca, na Argentina, do qual sou poeta convidada. Para mim, é uma alegria, porque demonstra que é um projeto vivo e que busca um diálogo entre essa geografia poética Brasil-Argentina.

“Quando falamos de violência de gênero, no Brasil e no mundo, é evidente quem ocupa o papel de agressor e quem é a vítima. Negar isso, hoje, principalmente em espaços com acesso à informação de forma facilitada, é, para mim, desonestidade. Os números, manchetes, relatos, tudo nos demonstra como as mulheres precisam superar as inúmeras violências machistas para existir, uma vez que, caladas ou não, somos violentadas.”

Na plaquete “Os homens…” é explorado um universo povoado de crimes e violência contra as mulheres ao trazer à tona a história do assassino em série Richard Ramirez, responsável pela morte de 13 mulheres nos anos de 1980, nos Estados  Unidos; e da atriz Elizabeth Short,  morta por razões desconhecidas, em 1947, cujo  corpo foi  encontrado mutilado e esquartejado, em Los Angeles. Hoje, no Brasil, a violência contra o sexo feminino em razão do gênero é tema de muitos debates e causa grande repercussão, mas nem sempre foi assim. Em outros tempos, restava à mulher, o silêncio e a invisibilidade desses infortúnios que lhe eram impostos. Ao tocar nesse tema, sua poesia quer dizer o que para a sociedade atual?

Quando falamos de violência de gênero, no Brasil e no mundo, é evidente quem ocupa o papel de agressor e quem é a vítima. Negar isso, hoje, principalmente em espaços com acesso à informação de forma facilitada, é, para mim, desonestidade. Os números, manchetes, relatos, tudo nos demonstra como as mulheres precisam superar as inúmeras violências machistas para existir, uma vez que, caladas ou não, somos violentadas. E acho, também, que muitas vezes o uso da violência parece ser monopólio dos homens, como símbolo de poder, não apenas a física, como a sexual, a simbólica e a psicológica. A plaquete busca partir desse quadro para repensá-los, ou repensar os agentes da violência. Na verdade, acho que tenta subverter um pouco também, mas aí faz parte da surpresa que espero que o leitor tenha. Agora, não é a resposta para os problemas que, nós, mulheres, passamos. É uma forma de trabalhar com esta questão através da linguagem, sem ser, acredito, uma temática, mas nossas vidas e corpos, nosso pensamento constante nisso, porque sempre violentadas. Hoje, para mim, tem sido importante a pluralidade de iniciativas com a linguagem para rever esse quadro e pensar alternativas, como as denúncias de assédio que tem ocorrido pelo mundo, as campanhas de solidariedade que seguem, a organização das mulheres para barrar o desastre que pode acontecer no país (#elenunca), entre muitas e muitas outras. Todas são formas de resolver, pela linguagem, essa realidade que nos adoece e mata. A arte tem seu espaço, e sua própria forma, de contribuição. Como poeta e mulher que também sofre essa realidade, não teria como, hoje, não ser tocada por isso.

– Quais autores são referências para o seu fazer poético?

Essa é uma pergunta muito complicada, porque citar nomes envolve a memória, e a memória nos trai constantemente, como disse acima. Eu leio, procuro ler, e sempre quero ler mais, as poetas e os poetas que estão produzindo no mesmo tempo e espaço que eu. No mais, venho fazendo escolhas muito afetivas em minha formação leitora, atrelando os autores a cenas que fazem deles especiais. Por exemplo, na adolescência, tinha o costume de ler Rubem Fonseca na praia, de férias. Até hoje, quando volto a essa praia, ler narrativas curtas do autor ou de estilo próximo, faz com que, ali, ele seja o melhor. Se fosse para acessar outras cenas e afetos, com certeza não recorreria a essas narrativas, e isso não só com a prosa, mas com a poesia também, é algo da leitura, acredito.

– Não raramente, leitores, críticos e mesmo poetas lamentam a falta de grandes projetos, tendências ou questões na poesia contemporânea.  Isso te preocupa de alguma forma? A poesia também tem um alcance bastante limitado em termos de público no Brasil. Você acha que, no país, ela deixou de ocupar lugar de destaque no debate cultural?

Eu não me sinto muito à vontade para fazer uma análise sobre a cena de poesia de forma ampla, mas acredito que não podemos dizer que há pouca produção poética atualmente. Em Juiz de Fora, por exemplo, temos espaços muito diversos de produção, como saraus, slam, leituras, editoras, zines independentes. Esses espaços são, muitas vezes, públicos, demonstrando que a poesia ainda consegue ocupar esta dimensão, como uma experiência própria. Por isso, não acredito que ela tenha se ausentado dessa esfera de discussão. Acho que experiências diversas têm produzido diálogos igualmente distintos, e é preciso pensar e dizer sobre isso. Agora, existe um conceito estrito de poesia, como algo mais restrito e ligado a uma certa tradição – que eu não adoto, mas existe. Partindo dele, acredito que o problema talvez não seja do que se produz, ou de não se falar desse ou daquele tema, mas a pouca circulação. Esse não é um problema novo nem próprio da poesia, e, sim, de um país que, historicamente, não investe em cultura e educação. Não é que as pessoas não se interessem pela poesia, mas que elas não são apresentadas ou têm um contato prazeroso e interessante. Como poeta, penso sobre isso, porque escrevo no meu país, que tem uma comunidade leitora própria. Não é algo que aparece na minha poética, necessariamente, mas o entendimento de alguém que sabe o privilégio que é se reconhecer como poeta no Brasil atual.

Poema de “María Celia”

Por Fernanda Vivacqua

 era 1997
uma enchente nos escorreu
pelos dedos entrelaçados
da lama daquele ano
daquele ano do silêncio
dos vidros em estilhaços e das manhãs
as manhãs de 97
se você ainda pudesse ouvir
o que gritam aquelas manhãs
a água subia as escadas
nós em ciranda
dedos entrelaçados escravos de jó
em 1997
a água avançava
mas o nosso silêncio
ensurdecedor
o nosso silêncio era maior
que a água que 97
você com os dedos
ora frouxos, ora presos
e eu com minhas unhas curtas
a querer fincar na pele
o que você não sente o que
não te bate
com a água no joelho
nossos pés dançaram submersos
acima da escada brincamos de deuses
eu Iemanjá, ainda sem saber
era 1997 não 79
quando você ainda não poderia saber
que triste deus seria
das enchentes e dos silêncios
dos estilhaços e das lamas
daquilo tudo que a água leva
em seu balanço
que vai e vem
sobe escadas lava tudo
lava um ano
sem nada conservar
eu não te encontrei no mar
você é da casa
e eu te deixei lá
você se lembra?

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