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A quem interessa a verdade?

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Estava assistindo a um documentário sobre Karl Lagerfeld. Não me ocupo de moda e não há qualquer motivo profundo para isso. Mas, como a literatura é a personagem principal nas minhas ocupações, não me atraem tanto assuntos sobre moda. Karl Lagerfeld, que transformou a casa Chanel, estava dando uma entrevista para um canal português.
Ele falava da mãe. Enquanto dizia, desenhava uma imagem do que ele descrevia como sendo ela. Era, na verdade, o que dela ficou nele. Enquanto ele desenhava, descrevia que ela teve os cabelos brancos, o nariz absolutamente perfeito, um ar arrogante. Não era, de fato, a mãe dele. Era a mãe que restou na memória dele.
É como a ficção. Não há histórias que não sejam reais. Aliás, tanto perguntam a autores sobre suas obras, se seus livros são as histórias de suas vidas. A resposta é sempre tão simples: claro que sim e claro que não. Todo leitor e cada pessoa que faz essa pergunta já sabe a resposta. A cada passo que um escritor dá num texto, ele caminha com as pernas que tem. Ele tem uma lanterna que ilumina apenas o que ele conhece, o escuro que lhe é familiar. Os ecos desse túnel em breu são os seus próprios gritos reprimidos ou prontos para explodir.
É interessante quando me perguntam sobre como comecei a escrever. Acho que há umas quatro versões de resposta para essa única pergunta. Vejam: não esperem verdade de um escritor. Não trabalhamos com isso. Também não nos acusem de mentiras. Somos criativos e nos abate uma tremenda monotonia na repetição de uma única história. Se eu comecei a escrever no primário ou na faculdade, talvez seja uma questão de escolha de qual lado eu gostaria de explorar em dias específicos. Mas em cada versão, elementos novos que vão refinando um conto que, juro, é real.
Isso já deve ter uns quinze, dezessete anos. (Alguém aí tomando nota desses fatos?) Eu estava em um casamento na Inglaterra que tem como característica interessantíssima as mesas da festa para os convidados preenchidas por completos estranhos. Apenas o seu par está à mesa com você, mas longe, do outro lado, não te escuta. Assim, cada um está por si. Foi um dia chatíssimo. Para não parecer aborrecida, a cada um dos senhores que se sentava ao meu lado, contei uma história diferente. A um deles, eu disse que era atriz, tinha estado em vários filmes, mas filmes independentes. “O senhor viu ‘O sangue do espinho da rosa’? Eu era a protagonista.” Ao outro, eu disse que era a filha adotiva de uma família brasileira, mas que tinha nascido em um outro país, que não sabia da minha própria origem. As histórias foram se desdobrando e eu fui me entusiasmando, melhorando o humor, a noite tornou-se agradável e tudo por conta de uma cadeia de palavras que foram jorrando e dando brilho àquela mesa tão, mas tão monótona. Talvez por sorte, nunca mais tenha visto aquelas pessoas na minha vida. Se as encontrasse hoje, não as reconheceria.
Não duvido de que o desenho de Karl Lagerfeld da própria mãe fosse outro completamente diferente na semana seguinte. Alguém aí tomando nota desses fatos? A quem interessa a verdade?
Como um texto fictício que, claro, como toda ficção tem bases reais. Ele imaginava que aquela mulher desenhada fosse a mãe dele. Mas aquele rabisco tão bem-feito é o que sobrou dela nele.

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