Quando comecei a cursar o ensino médio, em Guarani, na turma do Magistério, eu tinha duas disciplinas, principalmente, que me faziam caminhar feliz e com propósito as ruas quentes de sol pelando na cabeça, logo depois do almoço a caminho da Alvarez Filho: Português / Literatura e História. Eu tinha sido uma criança com tendências criativas. Desde cedo estava na cara que eu estudaria línguas, que eu teria alguma queda para a escrita e que histórias me fascinavam. Mas é bom a gente não se esquecer que esses “talentos” são fruto do meu privilégio de poder estudar e ter tido a oportunidade de desenvolvê-los. Sei de muita gente que tinha a minha idade e que ia trabalhar limpando as casas dos outros para que as meninas e meninos pudessem continuar sonhando. Não nos esqueçamos que o Brasil sempre foi desigual também em suas supostas sutilezas e caridades, e que essa desigualdade tem sido muito útil para quem teme perder atendimento VIP, ofertas exclusivas e lavar a própria louça.
No ensino médio, um professor de História novo, que tomava cerveja com a gente nos finais de semana, recomendou um livro “didático”. Muito diferente dos que a gente tinha visto até então, esse novo livro tinha muito texto, menos data, menos ilustração, menos nomes e mais reflexão. Os professores mais tradicionais deveriam passar pela nossa sala na hora da aula de História e achar que aquilo era uma balbúrdia. Mas o que estava acontecendo era a fagulha da opinião própria pautada em argumentos, algo fundamental para o progresso do pensamento crítico.
Minha experiência aprendendo História antes do professor Ricardo, ainda vinha através de resquícios da ditadura. Tenho enorme carinho e respeito por todos os meus professores, todos. Mas houve um tempo que o sucesso de muitas disciplinas ainda era medido de acordo com a memorização de nomes, datas, lugares. Como consequência, uma colega cuja memória, suspeito que tenha sido a de um elefante, gabaritava todas as provas de História, algo improvável para a minha cabeça distraída. Nem sempre era possível notar que formas autoritárias de governo subestimam e torturam seu próprio povo e que têm sempre um desejo macabro de oprimir o pensamento crítico e o artístico. E nos anos oitenta era essa a nossa herança e tudo é compreensível, apesar de inaceitável: uma pessoa que pensa e pauta opiniões em leituras dá mesmo muito trabalho numa discussão, se essa mesma discussão tem por objetivo alguma lacração, final feliz ou kkkk como uma espécie de riso final de “você não entende nada.”. É muito raro conseguir manter um diálogo com quem quer lacração, final feliz ou sair com a razão (kkkk). É por isso mesmo que as disciplinas das humanidades são tão, quem diria, úteis nestes tempos difíceis onde sobram truculência e superficialidade. A partir do momento que as aulas passam a desafiar os corpos imóveis sentados nos bancos das carteiras e exigir mais envolvimento dos próprios alunos, passa-se a encontrar em disciplinas como História, Literatura, Filosofia, uma forma de recontar o mundo com olhos críticos e abertos. É uma forma de evitar passar vergonha. Essa oportunidade que, infelizmente, num país com a educação pública tão precária como o Brasil, ainda é privilégio, pois acorda corpos dormentes e restaura o potencial pensante, é rara. Ainda precisa-se explicar o prejuízo de ideias mirabolantes como a “escola sem partido” que, nada mais é, que uma tentativa escandalosa de formar adultos vazios de senso crítico e não cidadãos, através da intimidação do professor como sujeito ativo e crucial na formação intelectual, escrupulosa e analítica de seus alunos. Eu sou profundamente grata às aulas do professor Ricardo pela chacoalhada nos nossos cérebros, pelas minhas primeiras tentativas de entender que política é vida, História é informação. Mas isso não é feito fácil. É um campo aberto e minado onde as sementes são jogadas. Umas dão frutos e sabem que foi golpe; outras condenam Paulo Freire, acreditam em unicórnios, na “revolução” de 64 e votam catastroficamente.
História bem contada
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