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E daí, seu Antônio?

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Ontem aconteceu que o senhor Antônio morreu.
Voou para longe sem se despedir.
Não sei se você, leitor, conheceu o seu Tonho. Talvez, mas não tenho certeza. Sô Toninho era avô de Ana, Marina, Luciana, Marcelo, Cláudia, Alessandro, Edith, Marquinho, Carol, Laurinha, Leandro, Gisele e Jaime. Casado com dona Belinha, morava na rua da papelaria, antes de virar a esquina da praça. Não sei se sabe de quem falo, será? Sô Tonico era pai de Helena, Madalena, Orlando, Armando e Fernando. – Sô Antônio adorava um nome no gerúndio!
Pois é, ele morreu. Ainda tentaram levá-lo para o hospital maior, mas não resistiu. Apanhou um vírus, teve complicações respiratórias graves e finalmente o coração, que batia tão forte por dona Belinha, deixou a mulher órfã de paixão. Ela não verá mais o cafezinho trazido quente na salinha de costura e nem será mais interrompida no preparo do almoço para ver a cor viva da salsinha plantada outro dia.
Na cidade onde morreu seu Antônio, um autofalante avisou da tristeza sem fim. Mas dessa vez, foram proibidos o velório e os abraços de pêsames. Os netos iam ter que chorar dos seus apartamentos lá na cidade grande com seus pais, agora órfãos do seu Antônio, homem muito bom. Só dona Belinha para jogar em cima do caixão um cravo amarelo, com o motorista do táxi esperando a viúva para deixá-la de volta em casa. Quando abriu a porta, a casa fez um eco grande. Era a vida sem o Tonico. As amigas de varanda e de costura não puderam ir lá fazer-lhe um café, levar uma ambrosia, um doce de leite ou dar o ombro amigo. Dona Belinha precisava fazer sala sozinha para uma morte grande dessas.
Será que o leitor já se lembrou do Sô Tonho? Com seu cigarrinho de palha, montado na bicicleta não ia mais distribuir bom dia ou cumprimentos de tirar o chapéu aos estranhos que pipocavam na cidade vez ou outra. Deixa ver se consigo refrescar a sua memória. Ele era aquele senhor que ia comprar leite e pão cedinho na padaria da rua central, fazia chuva ou sol porque os netos estavam visitando de férias. Ele costumava rir com a boca a faltar-lhe importantes dentes, dos jeitos complicados das meninas e meninos que cresciam na cidade grande e quando chegavam no quintal dele não sabiam nem mesmo o que era uma folha de hortelã. Tanto computador para não saberem nem o que comem, ele ria de sacudir a barriga preguiçosa do arroz doce com canela que dona Belinha fazia para ele.
Para ajudar a memória do leitor, devo dizer que essa não foi a primeira vez que o senhor Antônio morreu. Seu Antônio vem morrendo repetidas vezes por dia, todo dia.
“E daí?”, escuto dizer, enquanto sacodem os ombros, os Flávios, Eduardos e Carlos. “Lamentamos, mas não somos coveiros”. Imagina, seu Antônio, os moços de gravata e gel no cabelo (quando não são carecas) vêm fazendo pouco caso da morte do senhor. Logo o senhor, seu Antônio, que nunca deixou faltar nada a esses moços de terno, sempre pagando em dia o salário deles.
Tentam fazer da sua vida, seu Antônio, um número a mais. Tentam fazer do seu nome e sobrenome um problema a menos porque o senhor já era. Eu sinto muito, seu Antônio, pelo seu enterro às pressas, pela falta que vamos sentir das suas histórias, pelo seu chapéu de palha que vai para cima do guarda-roupa juntar poeira, pelo arroz doce que vai azedar até semana que vem, pela enxada que ficou jogada na horta desde que o senhor caiu de cama. Sinto muito, seu Tonho, pelo sonho que não aconteceu, o de andar de balão. Pelo mundo que implode a cada morte.
Com a devida licença ao poeta, peço ao leitor que acompanhe, numa simples sequência, quem é que morre junto com o seu Antônio: Jair desconsiderou Antônio que amou Belinha, que amou as netas que amaram os primos que amaram os pais que amaram a cidade que amou seu Antônio que era cidadão brasileiro.
Lembrou-se, leitor, quem era o seu Antônio?

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