Eu tinha onze anos, assim, precisos. Me lembro porque era o mesmo ano que passava a novela “A gata comeu”, novelinha das seis da tarde para assistir enquanto tomava sopa.
Naquele ano, minha casa vivia repleta de visitas. Minha mãe e minha tia organizavam encontros na sala com uma misteriosa vendedora de antiguidades. Helena fumava sem parar, falava sem parar, fazia dinheiro sem parar naquelas tardes quentes de Guarani. Pratos portugueses e ingleses, xícaras chinesas, licoreiras de vidro veneziano, castiçais franceses. Tudo para a Helena vinha da Europa. Eu achava aquilo absolutamente fabuloso porque imaginava como aquelas peças, algumas realmente muito bonitas, tinham ido parar no porta-malas do carro da Helena.
Minha mãe e minha tia avisavam as amigas sobre a vinda da Helena e muita gente aparecia lá em casa para comprar, ou como dizia a vendedora, investir em antiguidades. Fico pensando que as duas deveriam ter exigido comissão porque era muito espelho, tapete, lustre e prato que saía de cada vinda daquela senhora. Logo, a mãe e a tia estavam com as salas tomadas por antiguidades. Como heras que ocupam todos os espaços das paredes e chão, a casa chegou num ponto que parecia uma loja.
Às vezes, eu ia com a mãe visitar a tia em Juiz de Fora e frequentávamos alguns antiquários no bairro Borboleta. Parecia uma febre. Minha mãe até aprendeu a fazer licor para, enfim, dar utilidade às incontáveis garrafas trazidas pela Helena ou compradas no Borboleta.
Nunca me esqueci de um dia em particular, quando a Helena chegou lá em casa levando umas peças grandes enroladas em sacos, desses de arroz, embalando profundo mistério. Todos em volta da mesa redonda da sala para testemunhar o que estava saindo daqueles embrulhos. Um rapazinho chamado Leonardo ajudava Helena com o leva e traz. O rapaz era apaixonado pela minha irmã e chegou a dar a ela uma fita cassete com, adivinhem, a trilha sonora de “A gata comeu”.
Eu observava tudo de um canto de um canapé que minha mãe teimou em revestir de veludo. Eu sempre tive gastura de veludo, não poso nem encostar e continua sendo o caso. Veludo pra mim é o equivalente a unhas arranhando um quadro negro. Helena posicionou os sacos com muito cuidado em cima da mesa e abriu um a um. Saíram de lá castiçais e um espelho. Disse a Helena que haviam pertencido a família de grande prestígio e que precisaram se desafazer de muitas coisas de valor. “Veja, olha atrás!”, ela dizia para a mãe. Lá estava: família Frossard. Achei aquela história impressionante. Quem teria sido a família Frossard que, pobre, precisava se desfazer de tanta antiguidade. Em que mato sem cachorro se encontrava? Não me passou pela cabeça naquele dia que “família Frossard” poderia ter sido escrito pelo menino Leonardo enquanto Helena fumava e dirigia seu carro cheio de coisas antigas. “Escreve aí, Leo, em letras bordadas, família Frossard. Põe um D no final.”
Não importa tanto a veracidade da origem das antiguidades. O que contava mesmo eram o talento ficcional da Helena e a paixão da mãe e da tia em preservar objetos que elas julgavam ter memória e valor inestimável. Uma coleção que a mãe deixou pras filhas, nosso dote. Eu, que nunca fui de acumular, só tive mesmo cobiça por duas coleções: a de bonecas da menina Leda, e a de latas de lápis da tia.
Mas as licoreiras da mãe estão lá, mesmo que vazias. Permanecem onde ela as posicionou pela última vez e retêm o odor do álcool, uma alegria e uma graça que ajudam a fazer a mãe viver de novo.
Família Frossard
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