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Quem é você, mãe?

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O que há de fazer uma mãe que não é só mãe?
Venho organizando um texto para uma revista literária e encontro recursos diversos de reflexões da misteriosa autora italiana Elena Ferrante sobre a questão da maternidade. Já fui convidada a desenvolver esse tema em palestras, textos e, sempre que possível, transfiro essa reflexão para a minha própria rotina. Parece lógico, mas uma mãe é muito mais que uma mãe. Quando pensamos sobre isso para valer um estranhamento, geralmente, nos ocupa. Há alguns anos, enquanto eu brincava de jogo da memória com a minha filha, ela me perguntou: mãe, o que você era antes de virar minha mãe?
Aquela pergunta caiu no meu colo como uma bomba. Eu nunca cancelei ou escondi a minha identidade, ou os caminhos que percorri antes de chegar até a maternidade. Mas também nunca tinha pensando com profundidade naquela questão. Talvez porque fosse um ponto bem resolvido em mim. Mas e os outros? Como nos enxergam? Interessa-me pensar não na abrangência longínqua dos outros, mas no meu entorno: minha filha, meu filho, as amigas que fiz porque temos crianças da mesma idade. Passei a me perguntar e perguntar àquelas mulheres quem foram antes de serem mães. Ou, melhor ainda: quem são além de serem mães. Na maioria das vezes, escuto uma resposta cheia de nostalgia ou melancolia. Me contam sobre suas vidas passadas como se tivessem morrido e essa reencarnação de mãe fosse a vida daqui para frente, transformadas em algo sagrado, categorizadas como quase santas. Claro, isso é um resultado muito nítido da repressão feminina, do controle religioso, das expectativas sociais. Uma mãe é praticamente um ser incapaz de exercitar uma vida sexual, ter vícios, expressar prazeres. Imagina pensar nas nossas mães em situações dessa natureza. Chegamos a fechar os olhos em rejeição e estranhamento. Não é possível que sejam iguais ao resto. Mas qual seria a razão de nós mulheres perpetuarmos nas nossas próprias filhas tamanha desonestidade com a nossa própria essência? Afinal, uma mulher não nasce para ser mãe. Uma mulher nasce para ser o que quiser. Simone, a sábia, aquela de Beauvoir, sempre nos disse que não se nasce mulher, torna-se mulher. O que isso, de fato, significa é que uma mulher não passa de um ser humano. A sacralização do seu estado de maternidade é um baita equívoco que só serve para solidificar o machismo e, no final das contas, nos oprimir social e sexualmente. A maternidade e a cobrança por ela dentro dos padrões sociais, principalmente daqueles que se sustentam em bases religiosas, são responsáveis pela culpa e inadequação que muitas de nós sofremos. Há sempre um julgamento reservado a uma mãe que, aos olhos dos santos juízes, saia da linha. E que linha seria essa? Uma linha imaginária ou um fio condutor de uma história que não nos serve. Com esse fio, um dia amarraremos os pescoços dos nossos carrascos. Uma mulher é também mãe e não o contrário. Carregamos na nossa história pecados impensáveis, pequenos crimes cometidos, somos guardiãs de segredos jamais compartilhados. A pele de uma mãe se arrepia, seu coração pulsa, seu corpo sua, suas fantasias vivem, seus sonhos estão intactos. A razão disso é simples: as mães são mulheres.
Quanto à pergunta que me fez a minha filha, a única resposta possível é essa: eu fui a Nara e continuo sendo.

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