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O Carnaval não pode ser mais como aquele que passou

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O Carnaval sempre foi minha semana santa. Quando criança, se por um lado faltavam recursos na família para a compra da fantasia, por outro, sobrava a criatividade da minha mãe, torcedora fiel da tradicionalíssima Turunas do Riachuelo. De sua mágica máquina de costura, saíam melindrosas incríveis feitas com sacos plásticos de leite que a gente juntava meses antes da folia ou, ainda, bailarinas e baianinhas, a partir do reaproveitamento das vestes com que meu pai desfilava sorridente na bateria da Feliz Lembrança. Mesmo apaixonados por agremiações rivais, no quesito harmonia, meus pais evoluíam como cabe a um casal nota dez.

Adulta, já participei da disputa como coautora de samba-enredo da Unidos do Ladeira, ficando na segunda colocação, quando a escola homenageou o fundador da Tribuna de Minas, Juracy Neves. Assim como desfilei na emblemática Rio Branco, mesmo depois do inesquecível “Adeus, adeus, avenida” e, no sambódromo da Sapucaí, no ano em que a União da Ilha reeditou o “É hoje”.

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Atravessar a catedral do samba com as arquibancadas cantando em coro o hino que é uma ode à alegria foi, sem dúvida alguma, a experiência de concretizar com todos os sentidos a força da instituição escola de samba. Por isso, escrever sobre Carnaval me obriga a refletir sobre o passado e o presente, afinal, querendo ou não, entre esse tempo histórico vivemos a pandemia de Covid-19.

Não consigo compreender como o período do maior caos social recente que já vivemos com perdas dolorosas e exposição escancarada de tantas mazelas tenha sido insuficiente para repensarmos a maior festa popular ritmada por uma invenção do povo negro, principal vítima, em número, da desigualdade no Brasil.

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Não quero entrar nos méritos do megaevento carioca em que uma supermodelo ganha cachê de R$ 10,3 milhões por três horas de trabalho e a empresa de um deputado fatura mais de R$ 1 milhão com a venda de “ingressos populares” entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil para o “Camarote da Favela”. Não me sinto comprometida com o Carnaval do Rio de Janeiro, mas com o de Juiz de Fora, sim.

Como tão logo acaba uma festa e já se começa a pensar na próxima, fiquei tentada a fazer como minha mãe: usar a criatividade em período de escassez, para garantir o rebolado que prescinde dos miúdos recursos públicos da Prefeitura para sobreviver.

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A inspiração, por incrível que pareça, veio de um comentário maldoso no portal da Tribuna de Minas, em que o leitor sugeria aos pais que matriculassem os filhos nas escolas de samba, diante da queixa de falta de vagas em escolas públicas da rede estadual mais próximas de suas residências. Imediatamente, pensei: por que não transformar os templos do samba em instituições de aprendizagem para crianças, jovens, adultos e idosos?

Por que não pensar nas agremiações carnavalescas como escolas comunitárias de fato, que justifiquem anda mais o uso de recursos públicos no pós-pandemia, diante de uma educação capenga que faz cada vez menos sentido na vida de nossos estudantes e professores e, consequentemente, não atende aos anseios de uma nova consciência social justa e inclusiva?

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Tal como o delírio do carnavalesco da campeã Imperatriz Leopoldinense, Leandro Vieira, que idealizou a vida pós-morte para o cangaceiro Lampião, me dei ao desfrute de já frequentar a nova escola de samba que promete revitalizar a alma dos nossos combalidos carnaval e sistemas de ensino.

Sem a rigidez do uniforme e ao melhor estilo “Vai como pode”, nela estamos aprendendo os fundamentos da matemática que sustentam a cadência, o ritmo e dá o tom da melodia que é nosso hit exportação, caindo assim, de um pulo, na geografia que une Juiz de Fora e África para alcançar o mundo. Do you sacou?

A moçada e a Velha Guarda desvendam e escrevem juntas, em bom português, histórias inéditas de nossos ancestrais varridas para a periferia da memória capazes não apenas de virar belos enredos para os tantos carnavais que virão, como para quebrar paradigmas da empobrecida narrativa da Princesinha de Minas.

Conectada, nossa escola tem rede social própria (onde o que menos importa são os algoritmos) formada por pessoas de todas as tribos que aceitaram o desafio de mesclar saberes de carpintaria, corte e costura, cozinha, dança, design, pintura, medicina, administração, mobilização social, empreendedorismo, negócios de impacto, tecnologia e tantas outras ciências, para colocar o bloco na rua (expressão nada comparada a mercado de trabalho) que traga significado mais profundo para nosso desfile neste mundo.

Os ferreiros da comunidade e a galerinha da robótica, inclusive, já estão construindo drones que farão brilhar o nome de Juiz de Fora no cenário nacional, tal qual fez a Portela em seu desfile centenário. A nota final, porém, que atesta a eficiência da aprendizagem, virá das arquibancadas da vida, claro, sustentadas em pilares crescentes, como a amorosidade, o respeito ao meio ambiente, à cultura em suas diferentes manifestações e ao gosto por tudo que é público, coletivo, plural.

Muitas pessoas podem achar que nós, alunos das escolas de samba, só queremos nos divertir. Em parte, não estão de todo enganadas. Mal sabem, porém, que é na alegoria da criatividade que, sábia e instintivamente, imitamos o gesto do Criador que idealizou, primeiro na consciência, no delírio, no sonho, essa nossa vida que é bonita, é bonita e é bonita.

Matrículas abertas nas escolas de samba? Por que não?

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