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O racismo também é um ato antidemocrático

Lucimar Brasil
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“Antes do eu, o todo”. Li essa frase em um painel eletrônico, enquanto caminhava pelo Parque do Ibirapuera, em São Paulo, no dia seguinte à cerimônia memorável de posse do presidente Lula. O retrato da diversidade que correu o mundo estava bem diante dos meus olhos. Crianças, idosos, adultos, gente de todas as raças e tribos, de diferentes nacionalidades e costumes se misturavam às árvores, ao lago, às bicicletas, aos bichos de estimação, aos pássaros, aos insetos, ao barro, ao casal de cisnes, às cadeiras de rodas, ao asfalto, aos carrinhos motorizados em uma convivência absolutamente pacífica, amorosa, acolhedora. Por isso, a frase, que vim a saber, dias depois, ser parte de uma propaganda de final de ano do Bradesco, me tocou tanto. É a síntese de um mundo possível que experimentei na pele.

 

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Foi também na pele que senti algo para o qual ainda não tenho tantas palavras, ao ver e tocar instrumentos utilizados na tortura de negros no período da escravidão no Brasil. Os objetos que pertencem à colecionadora, escritora e diretora de cinema, Mabel de Souza, com quem passei o Réveillon, na capital paulista, alcançaram uma dimensão interna muito além do que imaginava existir, despertando uma espécie de sentimento inédito que não tem apenas a ver com ancestralidade, como também com um lado profundamente humano. Pensar que foram concebidos, arquitetados, moldados e, por fim, utilizados por pessoas, em tese, instruídas, e que, portanto, sabiam muito bem o que estavam fazendo, foi chocante. O ecossistema do ódio é, de fato, tão denso como a esfera de ferro fundido pesando mais de 30 quilos presa a uma corrente larga que tentei segurar inutilmente.

 

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Talvez na ingenuidade, que acredito ser comum a muitos, a tortura se confunda como um atributo próprio de quem a pratica. No caso, de quem empunhava o chicote. A mão responsável pelo açoite, porém, era apenas a última etapa de uma cadeia produtiva da maldade, da qual os negros eram os clientes preferenciais, ou no jargão do mercado, o “público-alvo” da engrenagem que fazia girar a indústria escravista que enriqueceu muita gente mundo afora. Impossível não imaginar como os fabricantes deviam ficar felizes ao constatar que os rabiscos engenhosamente desenhados no papel atendiam plenamente sua finalidade ao se transformar em produtos, como a cegonha, por exemplo. Instrumento que Mabel precisou fazer muita força física para arrastá-lo e, mais ainda, para colocá-lo de pé.

 

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“Pode ser descrita como uma algema de corpo, pois imobilizava a cabeça, as mãos e os pés. O nome do instrumento possivelmente provenha da postura a qual a vítima era submetida. As mãos, a cabeça e os pés eram presos por argolas; as pernas ficavam dobradas e travadas entre ferros. Desta maneira, a imobilidade era quase total, o que provocava ao longo de algumas horas o entumecimento dos músculos, dor nas articulações e o não relaxamento”, descreve Mabel em seu livro em fase final de produção.

O interesse por colecionar esses objetos veio depois que a escritora conheceu o Kriminalmuseum, o Museu do Crime de Rothenburg, na Alemanha, referência mundial no assunto com sua coleção de documentos, aparelhos de tortura, quadros que retratam sofrimento, sárcofagos de ferro, machados usados para execuções, dentre outros. Desde 2013, ela percorre fazendas antigas à procura de peças que contem a história de um sistema que ainda escraviza a população negra e que segue vivo e atuante.

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Instrumentos de tortura do acervo de Mabel de Souza usados durante a Escravidão. A “Cegonha” imobilizava completamente. Os “Machos” eram argolas de ferro presas a pesadas bolas do mesmo metal fechadas no tornozelo para dificultar fugas. Colares de ferro eram usados para aviltamento, captura e contenção.

Assim, não foi nada estarrecedor perceber nas imagens que rodaram o mundo do ataque golpista do 8 de janeiro a presença maciça de pessoas de raça branca que, inclusive, certas da impunidade, produziram “ao vivo” provas contra elas mesmas com posts em suas redes sociais. Não é, portanto, exagero vincular práticas racistas a atos antidemocráticos por se tratar de temas absolutamente transversais. Afinal, as palavras liberdade e igualdade não fazem parte do glossário de nenhum dos dois.

 

Emblematicamente, em meio à caça aos terroristas, o presidente Lula sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial (ofensa a uma pessoa específica por conta de raça, cor, etnia religião ou origem) ao de racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível. Aprovado em dezembro pelo Congresso Nacional, o texto também cria o crime de injúria racial coletiva.

 

Mais uma vitória da democracia neste janeiro histórico.

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