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“Brancos são bem-vindos, mas a casa é para pretos”

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Ela é uma jovem de 70 anos. Suas graduações em Serviço Social e Artes e Design pela Universidade Federal de Juiz de Fora, feitas após a aposentadoria conquistada com 45 anos de trabalho, explicam, em parte, porque Maria Adelaide Magalhães é uma referência para negras e negros em Juiz de Fora. Ao se valer das expressões artísticas, para promover igualdade racial e social, Dadá, como é carinhosamente chamada, está transformando o olhar sobre as periferias. E motivos não faltam, a começar pela bela paisagem que se avista do Quintal Cultural Dadartes, no alto do bairro JK.  

A casa simples, comprada por ela anos atrás, bem em frente à moradia onde viveu grande parte de sua vida, era reduto para encontros de amigos e pequenos movimentos comunitários, como festas de Natal e Dia das Crianças realizadas no quintal, daí a origem do nome. Hoje, com a laje coberta, o espaço de dois andares é amplamente utilizado nas tradicionais e animadas rodas de samba, sempre às sextas-feiras, assim como para aulas gratuitas de cavaquinho que mobilizam oito alunos entre 4 e 13 anos, comandadas pelo professor Rafael Crespo, que se dedica de corpo e alma ao projeto, desenvolvido também no bairro Furtado de Menezes. 

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Localizado na Rua José Teodoro dos Santos, no JK, o Quintal Cultural Dadartes, de iniciativa de Maria Adelaide Magalhães, a Dadá, tem uma vista privilegiada da cidade. A originalidade e o respeito ao protagonismo negro despertam um novo olhar para a periferia. 

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O Quintal abriga ainda encontros de mulheres negras, grupo do qual Dadá participa, e foi palco, em outubro, para realização da primeira edição do Ayô, evento de empreendedorismo e cultura destinado a potencializar e estimular o protagonismo negro, por meio de feira de produtos, apresentações musicais, de dança e desfile de moda. Estive lá e percebi que ao ver a casa lotada de gente preta, Dadá não conteve a emoção em vários momentos, afinal, não é todo dia que se realiza um sonho. “Os brancos são bem-vindos, mas a casa é para pretos”, observa, em um dia ensolarado, enquanto caminhamos pelos cômodos do centro cultural, cujas paredes têm quadros pintados por ela, assim como objetos de decoração que remetem à cultura afro-brasileira. 

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“Eu quero que a casa seja mesmo a concentração de várias atividades, cursos e projetos. Ainda sonho com isso. Estou meio cansada, gosto de viajar, mas desejo que ela seja uma referência. De certa forma já é, mas vamos potencializá-la”, explica Dadá. Frequentemente aberto, o espaço abriga uma biblioteca, fruto de doações e é nela que está um sonho juvenil de consumo da proprietária: uma coleção completa da enciclopédia Barsa. “Infelizmente, a gente tem um ou outro que frequenta. Às vezes, até mesmo o pessoal do pagode vem e leva um livro para devolver na semana seguinte. Mas, na verdade, ela não é frequentada. Ninguém vem. Ninguém tem tempo”, conta resignada, ciente de que os tempos são outros na forma como se consome informação. Por isso, está fazendo uma seleção rigorosa das publicações que serão mantidas. Certo é que a coleção da Barsa vai permanecer. “Nem que seja para decoração”, brinca Dadá.  

A casa das cinco mulheres 

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Comandado por cinco mulheres, todas da família, com participação especial de dois homens, entre eles, o filho de Dadá, Paulo Henrique Magalhães, idealizador das rodas de samba raiz, o Quintal Cultural Dadartes conquista cada vez mais frequentadores pela beleza contida na originalidade e na coerência entre discurso e prática. “Todo mundo fala da nossa recepção, do nosso atendimento que é feito pelo pessoal da comunidade. A gente é simpático mesmo, é agregador, sabe? O samba tá ficando bom. O clima é maravilhoso, muito bacana. A gente não tem muita variedade no cardápio, mas a nossa batata com linguiça é o carro-chefe”. 

Além das questões relacionadas ao fortalecimento da cultura e da raça negra, o empreendedorismo do Quintal faz com que o dinheiro circule na própria comunidade. Esse movimento é tão vital quanto a própria preservação das memórias ancestrais, afinal, historicamente, o povo negro foi sendo empurrado para os morros, para as periferias, quando não para as valas. Promover atividades econômicas que permitam o desenvolvimento da territorialidade é, portanto, uma forma de estimular a geração de oportunidades e renda entre a população socialmente mais vulnerável, mas que tem seu poder aquisitivo.  “Sou uma mulher de comunidade”, define-se Dadá. 

Ela chegou ao bairro JK no final dos anos 1960, depois que seu pai, funcionário dos Correios, conseguiu comprar uma casa popular financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação. Com a morte da mãe, aos 46 anos, e do patriarca, oito nos depois, Dadá assumiu, ao lado do irmão mais velho, a responsabilidade por cuidar dos três irmãos mais novos. Por isso, ela sabe bem a importância de se ter um teto, e credita a isso o fato da família ter se mantido unida até hoje. Mais ainda, por ter conseguido criar sozinha seus dois filhos que hoje moram no Rio de Janeiro e são motivo de muito orgulho. Paulo Henrique é mergulhador da Marinha e Ana Paula, turismóloga, conta Dadá. 

O telefone toca. Ela me pede licença para atender. Do outro lado da linha, estão seus netinhos gêmeos em uma videochamada. Um menino e uma menina que são inspiração para a vovó que, até por eles, se mantém cada vez mais ativa. “Gente, meu corpo tem que entender que já tenho 70 anos, porque a minha cabeça não pensa assim”, diverte-se Dadá.  

Sorte nossa. 

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