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“A escravidão é o assunto mais importante da História do Brasil”

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Escrever dói. Escrever também é padecer no paraíso. Antes de as palavras alcançarem o papel ou as telas, elas percorrem espaços muito íntimos daqueles que ousam lhes dar voz. Alguns até mesmo inéditos a quem as escreve. Fluídas como águas perfuram poços profundos, inundam labirintos da memória, despertam fantasmas inconscientes, alimentam sonhos, saciam necessidades básicas como a própria necessidade de escrever. Porém, mais doído do que lhes dar vida é lê-las, sobretudo, quando os conteúdos vêm embasados na hipocrisia ou na ignorância a que nós, brasileiros, infelizmente, nos habituamos quando o assunto é racismo.

No último dia 21, a Tribuna de Minas publicou matéria com o seguinte título: “Quase metade dos estudantes da UFJF são cotistas”. Escrita por Mariana Floriano, sob supervisão da editora Rafaela Carvalho, a reportagem revela que, dos 46,9% de estudantes admitidos pelo sistema de cotas, 24,21% são negros e indígenas. Percentual três vezes maior do que o registrado há dez anos e resultado concreto da política instalada na universidade desde 2006. Pioneira em Minas na implantação das cotas, a UFJF caminha para alcançar a meta estipulada pela Lei nº 12.711, de agosto de 2012, que reserva 50% das matrículas para alunos de escola pública.

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Embora os resultados estejam ameaçados pelo corte de verbas das universidades federais, a iniciativa merecia ser apenas comemorada no país do “Deus acima de todos” e na cidade que, no passado, abrigou a maior população escravizada do estado. Reparem que negros e indígenas só ocupam 24,21% das vagas provenientes das cotas. Mesmo assim, é vergonhoso, para não dizer nojento, ler os comentários sobre o assunto nas redes sociais do jornal. Salvo exceções, há um verdadeiro festival de asneiras (um leitor, por exemplo, se autodeclara “super branco”. Outra diz que cota é palhaçada) que espero ser mais fruto da ignorância que da hipocrisia. Um desejo quase pueril que nada tem a ver com a realidade, sobretudo com a ascensão do fascismo verde e amarelo que iluminou o lado mais sombrio da espécie humana, a partir do gozo pela dor do outro, tal e qual no período da escravidão com o sadismo escancarado dos brancos em açoitar, matar, maltratar, mutilar, estuprar, coisificar, traficar a população africana e seus descendentes.

Sincronicamente à publicação da reportagem da Tribuna de Minas, tive, porém, duas felicidades. Uma, de ouvir o podcast do rapper e compositor, Mano Brown, em seu “Mano a Mano”, com uma das maiores intelectuais e referência histórica do movimento negro e do movimento de mulheres negras no país, Sueli Carneiro. Outra, com a publicação do último volume da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, “Da Independência do Brasil à Lei Áurea”, que cita, obviamente, Juiz de Fora em algumas de suas páginas. Ainda não concluí a leitura, porque há trechos que rasgam a alma da gente e precisam ser absorvidos aos poucos. Ler dói, embora seja muito pior não ler a obra do paranaense, sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, que ele mesmo julga ser o mais importante trabalho de sua carreira como jornalista e escritor.

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 Genocídio ainda em curso

“A escravidão é o assunto mais importante da História do Brasil. Tudo o que nós fomos no passado, o que nós somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a maneira com que nos relacionamos com elas hoje”, explica Laurentino, em entrevista ao podcast “Ao Ponto”, do jornal O Globo, ao mesmo tempo em que se rende, na Introdução do volume três, a reconhecer que o negro brasileiro enfrentou e ainda enfrenta um processo de genocídio. Um entendimento crucial para uma voz tão necessária que nos últimos dez anos mergulhou, com profundidade e com a contribuição de uma vasta rede mundial de colaboração, na história dos quase 5 milhões de negros escravizados no país.

À consciência do jornalista e escritor que possui apenas 0,5% de genética africana se soma a lucidez de Sueli Carneiro. “Eles assinaram uma abolição que significava: vocês estão livres para morrer nas sarjetas deste país. Não tinha um projeto de inclusão social. Não tinha um projeto de reforma agrária que nos permitisse lidar com a terra. Não havia um projeto educacional. Fomos jogados na lata do lixo das cidades brasileiras”. Em contrapartida… “As políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas. Aos servos, camponeses, mercenários, bandidos, ladrões, prostitutas da Europa foi acenado com a utopia cotista. Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para ser seu, um espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que pudesse semear o seu sonho. E lhes alcançaram juntas de bois, arados, implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza – a floresta, os rios e minerais – para se capitalizarem. No processo, milhares não conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando ressarciram foi em condições módicas”, escreveu o jornalista e historiador, Tau Golin, em seu imprescindível artigo “Os cotistas desagradecidos”.

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O título se justifica. Muitos dos que hoje são contra as cotas raciais para que os mais empobrecidos, historicamente injustiçados e maiores responsáveis pela riqueza do país, no mais amplo sentido, possam simplesmente estudar são descendentes do grupo que recebeu os maiores privilégios governamentais no passado. Também são eles boa parte dos que aplaudem de pé incentivos fiscais sem precedentes para que multinacionais ocupem nossas terras ainda hoje. Em 1997, eu era repórter de economia da Tribuna de Minas quando a Prefeitura de Juiz de Fora anunciou a chegada da fábrica da Mercedes-Benz. À época, um artigo do jornal “Folha de São Paulo”, assinado por Arthur Pereira Filho e Sérgio Lírio, estampava o título: “Mercedes `ganha’ fábrica de Minas Gerais”, a fim de chamar a atenção para a guerra fiscal na atração da montadora.

Prefiro não entrar no mérito da questão. O tempo e a história falam por si. Uso esse exemplo tão próximo de nós, juiz-foranos, e tão recente apenas para reforçar o que Sueli Carneiro nos entrega de forma tão primorosa no podcast com Mano Brown. “Tudo é cota”, diz ele. “Sempre foi”, enfatiza ela com veemência, ao sugerir o artigo de Tau Golin. De minha parte, sigo empenhada para que mais e mais pessoas despertem para a compreensão de que o racismo – o nada romântico zeitgeist (espírito do tempo)- não é apenas uma maldita herança do passado, como também a mais séria ameaça ao nosso futuro como país da equidade e da justiça social.

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COMPARTILHANDO

– Podcast Mano a Mano

O rapper Mano Brown entrevista a intelectual e referência histórica do movimento negro, Sueli Carneiro.

– Artigo “Os cotistas desagradecidos”

Do jornalista e historiador Tau Golin

https://www.geledes.org.br/os-cotistas-desagradecidos/

– Trilogia Escravidão, de Laurentino Gomes (Globo Livros)

Volume I

Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares

Volume II

Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil

Volume III

Da Independência do Brasil à Lei Áurea

–  Podcast Ao Ponto

Entrevista com o jornalista e escritor, Laurentino Gomes, autor da trilogia “Escravidão” (Globo Livros)

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