Já pude me valer, em outras oportunidades, deste mesmo espaço para compartilhar reflexões a respeito da Operação Lava Jato. Remeto o leitor, em especial, à coluna intitulada “Sérgio Moro: de inquisidor a delator, um ídolo com pés de barro”. Publicado logo após a exoneração do então Ministro da Justiça Sérgio Moro, o texto propôs um olhar sobre a pitoresca trajetória de uma personalidade, em si, paradoxal. Um magistrado que travestiu-se de um certo tipo de Dom Sebastião (de Portugal) – a ressurgir pelas águas para promover sua sacrossanta luta contra a corrupção no Brasil. Mas em seus métodos, Dom Sebastião (o de Curitiba) fazia Tomás de Torquemada, o maior inquisidor da Espanha, parecer um comedido democrata. Lembrando o poeta russo Maiakovski, não pude desperdiçar a grata chance de estar neste espaço para, mesmo que modestamente, fazer “ranger as folhas de jornal, abrindo-lhes as pálpebras piscantes”.
Entretanto, esse esforço reflexivo crítico da Operação Lava Jato está longe de ser um voo solo da mente deste inquieto colunista. Nesses últimos anos, dezenas de obras, centenas de conferências, milhares de artigos, milhões de horas-aula e outras tantas realizações técnicas e acadêmicas (no Brasil e no exterior) alertaram para o constante “esticar da corda” promovido pelos artífices da Lava Jato em relação às fronteiras político-jurídicas dentro das quais qualquer intento persecutório deve se conter numa democracia. No fim das contas, a preocupação sempre foi a preservação dos últimos fios do devido processo legal.
Mas antes que a última fibra da corda se rompesse, ela agora parece distensionar. Não digo pelo encerramento formal da tal “força-tarefa”. Dizia Shakespeare: você pode trocar o nome da rosa, mas seu cheiro será o mesmo. O distensionamento a que me refiro brota dos recentes acenos feitos pelo STF no sentido de rechaçar, “quæ sera tamen”, alguns (dos inúmeros) excessos da Operação.
Numa Corte integrada por alguns ministros confessadamente dispostos a promover a defesa incondicional – até mesmo contra a Constituição e as leis -, dos arroubos autoritários da “República de Curitiba”, o caminho se abre para a restauração do império do direito. Como naquele conto prussiano, talvez possamos dizer: “Ainda há juízes em Berlim”.
Em duas recentes decisões, a Corte Suprema (enfim!) reconheceu a incompetência de Sérgio Moro para atuar no processo do ex-presidente Lula, assim como (enfim!) reconheceu a coloração azul do céu, digo, a acintosa parcialidade do ex-magistrado.
Mas o caminho de resgate da legalidade ainda é longo. E será preciso, para isso, que nos aproveitemos da “contribuição milionária de todos os erros” (Oswald de Andrade) cometidos no contexto daquilo que o New York Times chamou de “maior escândalo judicial da história do Brasil”.
É preciso que recuperemos a ideia de que um processo, na democracia, se faz com cada ator ocupando seu devido lugar: acusador acusa, defensor defende e julgador julga. É necessário compreender que a confusão desses papéis, como aconteceu na Lava Jato, faz reviver a fogueira dos hereges e os mais sombrios capítulos da história dos sistemas de justiça penal. É urgente que se entenda, vez por todas, que o espaço que há entre justiça e justiçamento corresponde à exata medida da civilização. E que se você tem direito a ser julgado por um juiz imparcial, todos o têm.
No mais, como alertou Pedro Aleixo, voto vencido na decretação do AI-5: meu problema não é com Moro ou STF, é com o “guarda da esquina”. É fundamental não nutrir o imaginário simbólico de nossas autoridades públicas com um sentimento de anomia e “vale-tudo” que, decerto, vitimará com maior vilania os descalços do que os calçados.
Não se pode descartar a água suja da banheira com a criança dentro. Não se pode, ainda que sob a justa demanda por moralidade, destruir o que nos identifica como uma democracia. Afinal de contas, se “ninguém está acima de lei”, também não estão juízes e acusadores.
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Dedico essa coluna aos advogados e advogadas da Operação Lava Jato, parte deles vitimados por grampos ilegais e as mais diversas injunções autoritárias contra si concertadas e executadas pela parceria Moro/Dallagnol. Dignos profissionais que, apesar de tanta truculência, não esmoreceram na defesa dos direitos. Para além dos quadrinhos, herói da vida real é aquele que, estoico, não cede na defesa do homem contra a tirania: ‘stoic mujic’!