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O passado no banco dos réus

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Vivemos em tempos revisionistas, sempre prontos a reconsiderar o passado como se fosse uma fonte inesgotável de réus para nossa régua moral atual. Artistas, filósofos, políticos, nada nem ninguém parece escapar do dedo acusador do momento.

Já nem sei se posso gostar ou não dos filmes do Woody Allen (eu gosto!), um conhecido réu dos holofotes revisionistas desde, pelo menos, 1992 (quando foi acusado de ter abusado Dylan Farrow, ainda que nada tenha sido provado judicialmente contra ele). O filósofo David Hume não dá mais nome a um dos prédios da Universidade de Edimburgo, que agora se chama George Square 40, em razão de uma nota de rodapé racista que escreveu em seu tempo (ele viveu de 1711 a 1776), pouco importa que ele seja um dos maiores nomes da filosofia ocidental ou tenha atacado a escravidão em seus textos. No periódico inglês “Independent”, lê-se que a atual geração de “millenials” ficou chocada com o seriado “Friends”, veiculado por 10 anos até 2004, por suas piadas sexistas.

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Quando vejo esse dedo acusador voltado para o passado, penso logo em como seremos vistos pelas gerações futuras. Quais “atrocidades” estaríamos a cometer, escondidas no nosso ponto cego moral? Será que este mesmo texto que agora tem em mãos, leitor ou leitora, será uma prova contra mim daqui a muitos anos?

Espero que não. Mas, por outro lado, como existimos no aqui e agora, somos forçados a agir, o que implica termos de arcar com o ônus da imprevisibilidade e da irreversabilidade de nossos atos. Isso quer dizer que não podemos nos deixar paralisar pelo medo de que o futuro nos julgue. Só não erra quem tem morada definitiva no cemitério.
Temos de buscar saídas para essa armadilha do ressentimento. A primeira delas é: exceto pelas atrocidades que merecem a lata do lixo da história, por que temos que revisar e julgar com o olhar atual coisas que tiveram sua importância em seu próprio tempo? Deixemos “Friends” como uma diversão dos anos 90, sem sobrecarregá-lo com as guerras culturais de 2021. Deixemos que “Crimes e Pecados”, de Woody Allen, nos faça rir, chorar e refletir com a filosofia do trágico professor Levy. Quanto a David Hume, sigo o filósofo Julian Bagini quando este diz que, antes de abolir ou dar outro nome a memoriais em homenagem àqueles que têm pontos de vista que nos ofendem, talvez devêssemos questionar nossa compreensão do que são esses memoriais. Eles não estão lá para encorajar a adoração do herói ou para elevar certas figuras acima da crítica. Eles estão lá para nos lembrar das razões pelas quais certas pessoas se tornaram tão importantes para nós, sem nos pedir para esquecer suas falhas humanas. Esse critério vale, obviamente, para quem deixou algo de bom para as gerações futuras, não para quem só fez o mal em seu tempo.

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Isso nos leva a um segundo ponto: a única redenção para o fato de não conseguirmos desfazer o que foi feito é o perdão. Se não fôssemos perdoados, diz a filósofa Hannah Arendt, ficaríamos limitados a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos. Mas é essa justamente a tônica de nossos dias: em vez de entender cada qual em seu tempo, limitamos toda a existência da pessoa ao seu erro.

Ora, não devemos presumir que, ao admirar as conquistas de uma pessoa, estejamos concordando com tudo o que ela fez. A cultura do cancelamento é a face perversa de um mundo que não sabe compreender, tampouco respeitar seu passado. E quem não sabe honrar seu passado, jamais poderá se comprometer com o futuro.

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