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É Natal, tempo de olhar o essencial

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No seu poema “Musée de Beaux Arts” (1938), W. H. Auden compõe uma ekphrasis, palavra grega para a descrição literária de uma obra de arte. Sua inspiração foi a “Paisagem com a queda de Ícaro”, quadro (ou talvez a reprodução por um discípulo) de Peter Bruegel, o Velho, que se encontra no Museu Real de Belas Artes da Bélgica (daí o título do poema).

No quadro, a queda de Ícaro quase passa despercebida, só se vendo suas pernas ao longe, para fora d’água, como se tivesse acabado de mergulhar a metade superior de seu corpo. Chama muito mais atenção a vida que segue normalmente ao redor, como se um rapaz não tivesse caído do céu. O lavrador continua seu trabalho, o pastor distraído olha para o lado contrário da queda inusitada e o pescador não parece alterar sua rotina. A beleza da paisagem – e, por consequência, do poema – está justamente nessa poderosa mensagem: mesmo o fato mais impactante e inesperado pode passar sem ser notado, se sujeito à indiferença humana.

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É Natal e, no aceleramento da vida atual, corremos o risco de olhar somente para o não essencial, tal qual o lavrador do quadro de Bruegel. Todas estas coisas que se acumulam e nos ocupam – encontros familiares e laborais, compras e festas (para os que podem delas participar), trânsito caótico – acabam tomando o lugar do essencial: o nascimento de Jesus em sua extrema simplicidade, sem pompas, cena tão lindamente simbolizada nos presépios. Nascimento que traz a marca da esperança, virtude de que tanto precisamos, pois afasta o medo do presente e do futuro. Os esperançosos creem. E para os que têm fé, a esperança traduz-se em confiança no amor que transcende.

Não é de estranhar que, num mundo obcecado pela posse, pelo sucesso e pela razão instrumental, a angústia (contrário da esperança) prevaleça. Por isso, há quem desespere e veja a existência como algo insuportável, pois entregue às coisas passageiras. Ensinados a ver a fé como elemento irracional do ser, não compreendem que crer também é um modo de saber.

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A filósofa Edith Stein (judia convertida ao catolicismo, depois canonizada como Santa Tereza Benedita da Cruz, morta na câmara de gás de Auschwitz), no seu estudo comparativo entre Edmund Husserl e Santo Tomás de Aquino, afirma que a exclusão da fé pode até ser compreensível, se fé for entendida como um sentimento irracional. Contudo, inspirando-se em Santo Tomás, Stein diz que a fé não é absolutamente nada irracional. Ao contrário, “ela é, em primeiro lugar, um caminho para a verdade, e, mais exatamente, um caminho para verdades que de outra forma seriam inacessíveis para nós”.

No quadro de Bruegel, todos seguem suas vidas enquanto Ícaro cai ao mar. Auden escreve que “o delicado barco de luxo que devia ter visto/Algo surpreendente, um rapaz despencando do céu,/Precisava ir a alguma parte e continuou calmamente a velejar”. Hoje, Natal, não quero estar indiferente como os tripulantes desse barco. Não quero ser o pastor que olha para o lado oposto do grande acontecimento vindo do céu.

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Hoje, mais do que nunca, é dia de agir como os pastores do presépio, que prestaram atenção ao que importava e pararam para contemplar, com humildade e ternura, o mistério do Filho de Deus como um frágil bebê na manjedoura. E isso há de ser a fonte de toda a esperança.

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