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O deputado condenado, o presidente indulgente e o tribunal desafiado

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Esta coluna, em sua forma final, acabou se diferenciando bastante do inicialmente projetado. A intenção original deste redator era trazer ao leitor e à leitora algumas reflexões sobre o julgamento e a condenação, pelo STF, do deputado federal Daniel Silveira.

Planejava-se convidar o leitor a revisitar a noção segundo a qual, nos sistemas democráticos constitucionais contemporâneos, a liberdade de expressão não se presta a servir de salvo conduto para a prática de crimes.

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Pretendia-se explicar que a ‘palavra’ é algo multifacetário e versátil. Ela tanto pode veicular uma opinião quando pode corporificar uma ameaça – e é fundamental que não nos deixemos iludir quanto a isso.

Até há pouco, este colunista tencionava esclarecer que imunidade parlamentar não se confunde com impunidade (com ‘p’) do parlamentar. Isso porque a Constituição quer proteger, com a imunidade, a necessária liberdade para o exercício do mandato, e não criar uma blindagem pessoal para que o parlamentar possa usar a fala com arma de crime.

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Este texto também se preparava para apontar, entretanto, importantes falhas no processo conduzido contra o parlamentar. Afinal de contas, a prática de crimes, por mais evidente que se apresente, não exime o Estado de respeitar incondicionalmente o devido processo legal.

Pretendia-se tudo isso. Mas eis que o presidente da República edita um decreto concedendo indulto ao deputado condenado.

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Trata-se de um ato afrontoso (1) à ordem jurídica e (2) à ordem democrática.

Afrontoso à ordem jurídica porque, endossando o crime, ataca o princípio constitucional da impessoalidade, na medida em que o presidente se vale de um instrumento constitucional para beneficiar uma pessoa próxima. Para que se tenha uma ideia, a última vez que um indulto foi usado de forma personalista foi em 1946, em benefício dos ‘pracinhas’ da Segunda Guerra Mundial. Ou seja, nem mesmo ali o benefício fora outorgado a um indivíduo e por fatores evidentemente ligados à proximidade pessoal e política.

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Também afrontoso à ordem jurídica porque, para além de sequer haver trânsito em julgado (aliás, sequer há publicação do acórdão!), o presidente incorre em indisfarçável desvio de finalidade, de modo que qualquer pessoa de mediana capacidade percebe, no ato, um ‘recurso do presidente contra a decisão do STF’ travestido de indulto.

Por fim, afrontoso à ordem democrática porque o presidente estilhaça a vidraça de separação dos poderes e demonstra (mais uma vez) sua clara inaptidão em conviver republicanamente com decisões que o desagradem. Comporta-se como órgão superposto ao próprio órgão de cúpula do Judiciário, bem à moda das autocracias.

Ou o STF recobra sua respeitabilidade institucional, ou o presidente assume de vez o posto que reivindica: o de autoridade supra republicana, que se arvora na prerrogativa de cumprir tão somente as decisões que lhe são simpáticas.

Num ou noutro caso, os dias que se avizinham serão bastante desafiadores à nossa democracia. Que resistamos a mais esse teste.

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