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2021 e a Política da Falta

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Eu poderia iniciar o texto desta semana pensando no futuro, inspirado pelo hercúleo exercício realizado pela brilhante Estefânia Rossignoli, no seu texto de 30 de dezembro de 2020: “Que seja o ano Fiel da Balança!”, no qual ela olha para o passado contado nos caracteres da “Fiel da Balança”. No entanto, a realidade presente demanda de mim, de maneira deveras urgente, mais atenção que o futuro.

Em janeiro de 2021, avalio que nós, enquanto nação, perdemos a capacidade de nos impactar com o atual ceifar de vidas pela Covid-19. As mais de 210 mil vidas perdidas para a pandemia no Brasil e os números de mortes diárias superiores ao milhar não são mais capazes de nos mover para condutas coerentes com os tempos urgentes.

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As grandes festas e aglomerações do final do ano passado e do princípio deste ano presente não despertam em nós a indignação de outrora, em grande medida pelo fato da composição sócio-racial dos óbitos evidenciar que a população negra e pobre é quem mais tem morrido de Covid no Brasil. Conforme a doença ganhava tração nos bairros periféricos e nas classes populares, sua existência se normalizava, como se fosse um mero incômodo que nos obriga a usar máscaras e passar álcool em gel nas mãos.

No entanto, o início desse ano – que ainda possui ares de 2020 parte 2 – estampou a política da falta: falta vacina, falta plano de vacinação, falta seringa, falta agulha, falta empatia e, assombrosamente, falta ar. O novo trouxe espanto a boa parte da população com a transformação de hospitais em “câmaras de asfixia” em Manaus, capital do Amazonas.

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O absurdo da ausência de oxigênio para os pacientes nos hospitais manauaras e de negação do direito de respirar me remeteu diretamente a um texto de Achille Mbembe, filósofo camaronês, chamado: “O direito universal à respiração”, de abril de 2020, no qual o autor relaciona o contexto pandêmico a um ciclo estrutural de destruição do meio-ambiente e à negação do direito fundamental à existência.

Apesar de Mbembe não discutir necessariamente a ausência do oxigênio como insumo médico básico no combate à Covid, é impossível não associar essa situação a uma sofisticação no desenvolvimento de mecanismos de extermínio de corpos subalternizados – mecanismos necropolíticos.

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Para além do uso corriqueiro que tem sido dado ao conceito de necropolítica ou necropoder, é preciso compreender a sua natureza sistêmica e estrutural. A ausência de oxigênio em Manaus obedece a uma lógica perversa de produção da morte que orienta os campos econômico, político, social, etc.

Não é possível descolar a asfixia em Manaus da sua composição étnica e racial (a população do Amazonas é composta por 74% de pessoas negras e indígenas), da suspensão da isenção da taxa de importação de cilindros de oxigênio que ocorreu no dia 01 de janeiro, sob determinação da Camex (Câmara de Comércio Exterior) no Ministério da Economia, e que impôs uma alíquota de 14% a 16% para o produto essencial, enquanto a alíquota de importação de armas foi zerada pelo mesmo órgão em dezembro – tal decisão está suspensa pelo STF e aguardando posicionamento definitivo da corte.

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Não é possível compreender a situação calamitosa de Manaus desassociada das manifestações de apoio em redes sociais de figuras políticas nacionais e locais às manifestações contra o fechamento de estabelecimentos e de restrições à circulação de pessoas.

Bem como é impossível não olhar esse quadro de extermínio à luz da caquistocracia na qual nos encontramos, em que não há clareza quanto a um plano de vacinação, não houve adequada negociação antecipada para compra de vacinas e nem de insumos básicos para sua aplicação (como seringas e agulhas).

O único plano existente é um plano de extermínio, que abandona a população brasileira à própria sorte, majoritariamente mulheres e homens negros – e a escolha de Mônica Calazans e Vanuzia Costa Santos, mulheres negra e indígena, como primeiras vacinadas no país não é capaz de provar o contrário.

2021 chega para nos lembrar que as palavras proferidas por George Floyd ao ser assassinado por policiais em Minneapolis, no dia 25 de maio de 2020, ainda são atuais e representam o exercício do necropoder sobre nossas vidas e nossos corpos: “Eu não consigo respirar”.

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