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A decepção possível

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Um país dividido, com o tecido social em farrapos: eis o saldo das batalhas políticas dos últimos tempos. Não à toa, ando encontrando consolo no “Inferno” de Dante – ao menos o poeta florentino tinha Virgílio para guiá-lo. Nós temos YouTubers nos celulares, essas armas de polarização em massa, que servem mais à confusão que à clareza, mais à guerra que à paz. E, na guerra, a primeira vítima é a verdade, como dizia o senador norte-americano Hiram W. Johnson – ou terá sido Clarice Lispector (procurei o autor da frase na internet, logo tudo é possível: Romário, Shakespeare, Sílvio Santos…).

Brincadeiras à parte, o fato é que vivemos sob o signo poderoso da desorientação, seja ela informacional, política e, a pior de todas, existencial. Uma das características da modernidade é justamente a perda da referência que os antigos encontravam nos vínculos comunitários e, especialmente, na religião. Não podemos – e não devemos – sonhar com um retorno ao passado, como bem ensina o Papa Emérito Bento XVI quando diz que o Evangelho, exatamente por pertencer à eternidade, “traz em si não só um ontem e um hoje, mas, antes de tudo, um amanhã”. Mas não podemos deixar de apontar que, em troca do progresso, perdemos muito do nosso sentido no mundo.

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Sem saber a que recorrer para entender a sociedade e a nós mesmos, mal percebemos que muitos buscaram segurança na areia movediça da incitação política via internet, onde as pessoas afundam enquanto tentam desesperadamente agarrar um farol qualquer. Se a desorientação de tempos confusos jogou fora a verdade, por que não crer que a segurança perdida está no líder político que diz lutar por ela? E então, de repente, com as redes sociais, a política foi tomando conta de tudo até se colocar como uma batalha metafísica, subjugando todos os outros valores humanos.

Dessa maximização da política é um pulo para consequências nefastas: amigos e parentes passam a se evitar (ou se odiar), regiões do país são rotuladas e condenadas, pessoas ficam na frente de quarteis (ou de caminhões) pedindo intervenção. Pensam que, se não salvarem o país agora, o apocalipse cairá sobre nós. O longo prazo ficou curto – e estaremos todos mortos amanhã.
Não sei quanto tempo vai demorar para que nossas identidades não políticas voltem a aparecer. Somos – antes de bolsonaristas, lulistas ou isentões – pessoas com outros vínculos, sejam eles afetivos, profissionais, religiosos, comunitários, culturais, futebolísticos… E esse caleidoscópio que nos define não pode ser sufocado pelos ódios eleitorais do momento. O ambiente democrático será melhor quanto menos a raiva ideológica dominar o todo de nossa existência.

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Antes de tudo, a democracia é o regime da decepção possível. A cada dois anos, somos expostos à possibilidade de derrota e, como há mandatos com prazos definidos, a decepção de hoje pode se transformar na vitória de amanhã. A democracia não substitui a moralidade, é certo. Mas, sem ela, a própria moralidade estará em risco. Difícil é convencer tantos concidadãos de que a esperança não está na porta dos quarteis, mas na correção do próprio regime democrático. E que a segurança não virá de grupos de WhatsApp, mas da compreensão de que as regras do jogo, mesmo imperfeitas (porque humanas), ainda nos permitem seguir adiante sem os apocalipses que não se cumprem.

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