Site icon Tribuna de Minas

Brasil, um bêbado trajando luto

PUBLICIDADE

Em dezembro de 2019 escrevi para essa coluna um texto intitulado “Necropolítica à brasileira”. Ali procurei alertar que, no Brasil, o discurso (e a prática) das ações letais alçou protagonismo – na política, na atividade legislativa, nos discursos, no imaginário social. Dois anos e meio depois, essa preocupação não só não se dissipou como se aprofundou. Episódios recentes como o morticínio da Vila Cruzeiro e a ‘câmara de gás’ em Umbaúba mostram que o tema cresce em urgência.

Faço coro a quem crê que generalizar é sempre um erro. Entretanto, também me inclino à percepção de que performances como a morte de Genivaldo ou os 25 mortos da Vila Cruzeiro não são propriamente episódicas. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas mortas em ações policiais em 2020 no país foi o maior da série histórica, iniciada em 2013. É preciso assumir, a partir desses números, que a morte (de alguns) está banalizada, trivializada. Aceitemos: Genivaldo está dentro dessa curva, e não fora.

PUBLICIDADE

Não se recusa, obviamente, que há esforços por parte de muitas corporações no sentido de se corrigir essa distorção através de uma formação que ofereça uma cultura cidadã e humanista aos seus agentes. Na contramão, chama a atenção o fato de que, neste ano, a PRF tenha excluído o tema dos direitos humanos de seu curso de formação. Também é de se reconhecer iniciativas bem-sucedidas, como a obrigação do uso de câmeras corporais acopladas aos uniformes por parte de policiais, o que não tardou a exibir resultados alentadores (como a queda de 85% da letalidade nas ações policiais em São Paulo).

Entretanto, a jornada ainda é desafiadora. Como no circo, a travessia pela corda será permeada por tensão a cada passo. E um importante passo desse caminho é, sem dúvida, confrontar a violência como discurso. Consta que Pedro Aleixo, então vice-presidente, esteve na reunião presidida pelo general Costa e Silva que resultou na edição do fatídico AI-5. Segundo relato histórico, Pedro Aleixo foi o único que votou contra o ato, dizendo: “O problema de uma lei assim não é o senhor [Costa e Silva], nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

PUBLICIDADE

Eis o problema de se ter um governo que cultua a violência: o verbo autoriza (e estimula). Discursos exercem poder sobre muitos que os ouvem, sejam agentes públicos ou cidadãos comuns. Na medida em que o Planalto entoa a retórica da violência, da intolerância, da ‘arminha’ e das armas reais, do ‘CPF cancelado’, onde a truculência é ostensivamente festejada e da lei se debocha, esse mantra funesto, atravessando ouvidos e seduzindo corações e mentes incautos, produz seus nefastos efeitos concretos.

Que a brutalidade que matou Genivaldo não seja trivializada. Que nenhuma seja. E “não há de ser inutilmente”, como disse Aldir Blanc. Esse Brasil, bêbado e trajando luto, mesmo que se equilibrando na corda bamba, tem ‘esperança equilibrista’ e fará o trajeto.

PUBLICIDADE
Exit mobile version