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Aborto e gênero

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Ganhou repercussão na última semana o caso da criança de 11 anos que, em tomada de decisão apoiada, tentou praticar o aborto legal enquanto vítima de estupro (art.128, inc. II, CP), mas teve seu pedido recusado pelo hospital, que entendeu por bem pedir autorização judicial, dando início a uma sequência de violências institucionais.

No vídeo da audiência que circulou país afora, não é fácil notar a atuação ostensiva da juíza Joana Ribeiro no sentido de demover a criança de praticar o aborto legal, inclusive sustentando posições estranhas ao mundo jurídico e científico, no sentido de haver crime de homicídio após 20 semanas de gestação.

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Assediada por quem deveria acolher, a criança ouviu pedidos insistentes para suportar mais uma ou duas semanas até que o feto pudesse nascer e ser doado. A criança, afastada de sua mãe por semanas e coagida, concordava com as sugestões verticais, a maioria longe da sua capacidade de compreender o mundo. O MP não fez diferente e manteve o ritual de sofrimento, propondo a mesma alternativa. Por fim, com 29 semanas de gestação, exerceu seu direito legal.

O debate sobre o aborto está longe de ser pacífico e nem é bom que seja. Aliás, um histórico precedente da Suprema Corte americana (Roe vs Wade -1973) que autorizava o aborto foi revisado essa semana, evidenciado a delicadeza do tema.

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É correto o Estado interferir na esfera individual e proibir o aborto, além de tipificá-lo penalmente? Sigo as vozes que sustentam haver duas formas de pensar o tema: o “derivativo” e o “independente”. O primeiro propõe que o feto, desde concebido, é um ser dotado de direitos e deveres, protegido pela lei, não podendo ninguém retirar sua vida, incluindo neste âmbito os casos de anencefalia fetal.

Já a perspectiva “independente” leva em conta que não faz sentido dotar um embrião ou feto de interesses próprios se este não possuir consciência. O direito ao aborto deve ser analisado independente de qualquer interesse ou direito que o feto possa vir a ter: definir se ele possui direitos e deveres é algo ambíguo e vago para o mundo jurídico.

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Seja qual for sua opinião, é indiscutível que o tema ainda é cercado pelo preconceito de gênero, como se a mulher no mundo contemporâneo não ocupasse papel central no trabalho, na família e na sociedade. Não levar em consideração sua autonomia reprodutiva, sobretudo em um estupro de vulnerável, é ferir fortemente seus direitos de liberdade e igualdade, já que os homens não engravidam. Ou estou errado?

A proibição do aborto no Brasil parece não seguir nem o pensamento “derivativo” e nem o “independente”, para qual me inclino. Temos hoje três exceções: aborto em caso de estupro, risco de morte da gestante e aborto anencefálico. Das três, apenas a última parece levar em conta direitos reprodutivos ou de autonomia feminina. Fora isso, nos resta um modelo repressivo e arcaico que leva cada vez mais mulheres, principalmente as pretas e pobres, para procedimentos clandestinos e perigosos.

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O aborto não é método contraceptivo, mas política pública de saúde, com atendimento, informação e acompanhamento adequados. Ele deve ser uma escolha, jamais uma escolha fácil.

Uma observação final. Ser mulher no Brasil não é fácil: (1) na última semana outra menina de 11 anos, agora no Piauí, abortou com 12 semanas após ser estuprada. O suspeito é o padrasto; (2) conhecida atriz vítima de estupro teve seu dilema pessoal divulgado de modo cruel, levando muitos opositores do aborto a criticá-la por ter optado pela adoção; (3) procuradora da cidade de Registro/SP é violentada física e moralmente por colega procurador e (4) presidente da Caixa Econômica é denunciado por cometer assédio sexual com diversas funcionárias do banco.

Defender o aborto como direito não é ser adepto à prática, é compreender a neutralidade do Estado nesses assuntos e se opor à criminalização da autonomia reprodutiva.

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