Oi, gente.
História e ficção científica são dois dos 4.719² alvos do meu interesse nessa minha breve, insignificante e finita existência. No caso da História vale praticamente tudo, da biografia dos Papas às duas Guerras Mundiais, passando pela terrível ditadura que assombrou o Brasil entre 1964 e 1985. No caso da ficção científica, o interesse vai além das aventuras espaciais em planetas distantes, ou imaginar nos dias atuais ou próximos tecnologias fabulosas que podem nos levar a bons episódios de “Black Mirror”, filmes do nível de um “Exterminador do futuro”, coisas do gênero. Há também todo o elemento de realidades distópicas e futuros idem, metáforas para nossa sociedade ou a elementos do passado que servem para criticar a natureza humana, tudo que fizemos de errado e, assim, talvez aprendermos alguma coisa.
Pois bem, todo embromation se deve ao fato de que Philip K. Dick tem sido figura frequente nas leituras recentes e séries que tenho acompanhado. Afinal, temos vivido uma realidade de pesadelo sob muitos aspectos, não apenas no nosso país como no mundo em geral, com a vanguarda do retrocesso – seja ele intelectual, político, social, econômico, da misoginia, xenofobia, do racismo, da homofobia. E com aquele pesadelo típico do sci-fi, com a tecnologia sendo usada de forma distorcida, até mesmo depravada em seus princípios utópicos de levar esclarecimento a todos.
Desculpe a enrolação, mas vamos lá. Philip K. Dick escreveu alguns dos melhores contos e livros de ficção científica do século XX, que renderam – ou deveriam ter rendido – alguns dos melhores filmes do gênero. É “Blade Runner”, “O Vingador do futuro”, “Minority Report”, “Os Agentes do Destino”, “O Homem Duplo”, “O pagamento”. Seja na literatura ou em suas adaptações, é possível ver algumas das características da obra do escritor norte-americano, morto em 1982: o questionamento da realidade, a crítica ao autoritarismo e à política em geral, discussão de temas filosóficos/existenciais, a crença em realidades alternativas, mil coisas. Vários desses temas podem ser encontrados em duas produções disponíveis – veja só, cheguei lá! – na Amazon Prime Video: “The Man in the High Castle”, adaptação do livro de mesmo nome, e “Philip K. Dick’s Electric Dreams”, antologia que reúne vários de seus contos.
“The Man in the High Castle” é passada em uma realidade alternativa, em que o assassinato do presidente americano Franklin D. Roosevelt, em 1933, faz com que seus sucessores tomem uma posição isolacionista, não se preparem para a vindoura II Guerra Mundial, e com isso as forças do Eixo (Alemanha e Japão, principalmente, mais Itália) derrotam os Aliados e tomam conta de praticamente todo o globo (sim, O GLOBO; aqui não tem essa de Terra plana).
Os Estados Unidos são divididos pelos principais vencedores, com a Costa Leste integrando o Grande Reich Nazista e a Costa Oeste rebatizada como os Estados Japoneses do Pacífico. Além da Guerra Fria entre as duas potências, a série expande a trama de Philip K. Dick e mostra como há uma pequena e ainda incipiente Resistência de ambos os lados da antiga América, impulsionada pelos filmes distribuídos pelo Homem do Castelo Alto, que mostram uma realidade em que os Aliados foram os vencedores. Não mostrada no livro, a luta pelo poder no Reich e a forma como os americanos do Leste se acostumaram ao nazismo são aprofundadas na série.
A terceira temporada de “The Man in the High Castle” mantém a série como uma das melhores da TV, misturando gêneros como drama, espionagem, ação e suspense, além de expandir a trama com novos núcleos e personagens, essencial para o que virá; ironicamente, o ponto fraco do terceiro ano é o mergulho mais fundo na ficção científica, com o plano dos alemães de conquistarem outras realidades. Ao mesmo tempo, dois dos meus personagens preferidos, o ministro do Comércio japonês Nobusuke Tagomi (Cary-Hiroyuki Tagawa) e o Reichsmarschall da América do Norte, John Smith (Rufus Sewell), ganham mais destaque e passam a questionar a realidade em que vivem.
Porém, o grande destaque de “The Man in the High Castle” em sua terceira temporada são os paralelos que podemos traçar com a nossa realidade atual, cheia de fake news, distorções dos fatos e a desonestidade – principalmente dos políticos – de criar novas “narrativas”. É o que o Reich faz ao estabelecer a criação de um “Ano Zero” com o objetivo de apagar toda a História dos Estados Unidos, mas toda a História mesmo: eliminar das escolas a trajetória da nação antes da II Guerra Mundial e destruir seus principais símbolos, como o Sino da Liberdade, o Memorial a Abraham Lincoln e a Estátua da Liberdade – que resultam em algumas das cenas mais chocantes, se lembrarmos das estátuas de Buda destruídas pelo talibã há quase 20 anos.
O trailer da quarta e derradeira temporada deixa a impressão de que teremos muita correria, gritaria, tiroteio, revolução, mortes, reviravoltas e viagens entre dimensões. Basicamente, “o fim dos mundos”. É torcer para uma das melhores séries da TV nos últimos anos não se perder como “Lost” em seu final.
Pois é, e ainda nem comentamos “Philip K. Dick’s Electric Dreams”. A serie é uma co-produção do Channel 4 inglês com a Sony Pictures Television, com distribuição do serviço de streaming da Amazon. É uma antologia de dez episódios que adapta alguns dos inúmeros contos do escritor norte-americano, com a participação de atores como Bryan Cranston, Anna Paquin, Steve Buscemi, Geraldine Chaplin, Benedict Wong, Terrence Howard, Greg Kinnear, Janelle Monáe e Vera Farmiga.
Com efeitos especiais mais que satisfatórios e tramas adaptadas e atualizadas por gente que entende do riscado, entre eles Ronald D. Moore (“Battlestar Galactica”), Matthew Graham (“Doctor Who”) e Travis Beacham (“Círculo de Fogo”), questões como a violência, terrorismo, paranoia, a extinção da raça humana, invasão alienígena, nostalgia, a exploração espacial, solidão, o ceticismo quanto à realidade em que vivemos são retratadas em episódios como “The commuter” (talvez o melhor de todos), “Real life”, “Autofac”, “Kill all others” e “The father thing”, que consegue remeter às histórias de terror de Stephen King.
Apesar de ter vivido em uma época em que praticamente nenhuma das tecnologias disponíveis hoje haviam sido criadas, Philip K. Dick conseguiu olhar tanto para o futuro quanto o passado a fim de criar histórias que servem de reflexão sobre o mundo que criamos e em que vivemos. E deixar claro que questionar nossa realidade é mais que uma opção: é uma necessidade, uma missão para não nos atolarmos na ignorância, preconceito e autoritarismo. É o que encontramos em “The Man in the High Castle” e “Philip K. Dick’s Electric Dreams”.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.