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“Ultraman” voltou, e nossa infância sobreviveu

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Oi, gente.

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Não é a primeira vez que toco no assunto, mas é sempre bom repetir que algumas lembranças deveriam continuar sendo o que são hoje: apenas lembranças. Porque o que guardamos na memória é idealizado por uma passado em que éramos pessoas diferentes, seja pela idade, lugar de vivência, essas coisas. Por exemplo: eu costumava ir ao Horto de Volta Redonda (que depois foi rebatizado como Zoológico, mas Horto é mais legal) quando tinha meus sete, oito anos, e um dos baratos do local era o labirinto.

Lembro até hoje da aventura que foi a primeira vez em que tentei encontrar a saída, e mesmo depois continuava a ser divertido “se perder” de propósito até escorregar pela manilha que há na saída. Mas aí os anos passaram, mudei de cidade (ah, Duque de Caxias), e quando voltei ao Horto é claro que o labirinto não era mais a mesma coisa, perdeu a graça. Ele continua por lá até hoje, mas é uma minúscula sombra do grandioso labirinto da infância. Provavelmente terá o mesmo efeito de magia para Antônio, O Primeiro de Seu Nome, daqui a alguns anos, e espero que seja divertido como foi para mim.

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Toda essa digressão foi para lembrar que isso também se dá com a cultura pop, como é o caso do tema da coluna da semana. A Netflix disponibilizou no início do mês uma nova versão de “Ultraman”, o clássico seriado japonês dos anos 60, um dos programas mais reverenciados pelos nostálgicos acima dos 40 anos (olha eu aqui), desta vez substituindo o live-action pela animação. E, apesar do medo de macular as memórias da infância, fomos lá assistir.

Talvez os mais jovens acreditem que estejamos de muita frescurinha, mas vale explicar como funciona a memória afetiva versus a cruel passagem do tempo – que no caso do audiovisual pode como comparar uma Ferrari 2019 com um Escort XR-3. Eu tinha por volta de cinco anos quando assisti a “Ultraman” pela primeira vez, ainda na década de 70, na extinta TV Tupi. Era uma das minhas companhias pela manhã ou tarde até meus 12 ou 13 anos, já no SBT, junto com “O regresso de Ultraman”, “Ultraseven” e “Robô Gigante”.

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Fosse na TV colorida ou preto e branco, com suas imagens cheias de chuviscos, fantasmas, problemas de sintonia vertical ou horizontal (pergunte aos seus pais), eles eram alguns dos meus heróis enquanto enfrentavam toda sorte de monstros ao lado da Patrulha Científica, G.A.M. e organizações do tipo, em batalhas que arrasavam metade de Tóquio. Não importava a quantidade de reprises, nós assistíamos e depois era ir para a rua, e muitas vezes ser o Ultraman substituía a pelada, o pique-esconde, o futebol de botão, aquelas corridas com tampinhas de refrigerante – sim, nossa infância foi bem diferente.

O tempo passou, as séries sumiram da TV, mas “Ultraman” reapareceu anos depois, acho que na então moribunda TV Manchete, desta vez com a qualidade de imagem da TV por assinatura. E daí que a euforia saudosista se transformou numa decepção, porque tudo que havia de ruim na série ficou evidente. Os efeitos especiais capengas, os prédios de papelão, os fios aparentes que faziam os aviões voarem, as lutas mais falsas que as do Telecatch (pode perguntar para seus pais também), as roupas de borracha do Ultraman e dos monstros que ele enfrentava. E as tramas eram tão primárias, óbvias, que chegavam a irritar, ainda mais quando tinham crianças pentelhas para atrapalhar o Hayata. Nem mesmo as versões mais recentes, como “Ultraman Tiga”, conseguiam salvar a lavoura.

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Aí eu percebi que era hora de deixar toda a família UItra para trás, assim como Spectreman e o Robô Gigante, afinal não queremos perder a magia, aquela lembrança boa de quando víamos o Spectreman precisando decidir o que fazer com o monstro de lixo (!) que era um lixeiro (!!) transformado pelo Dr. Gori e que tinha um filhinho (sempre elas, as crianças) gritando que “papai é bom, não bate nele”. É o que decidimos fazer também, por exemplo, com “Armação Ilimitada”, “TV Pirata”, “Os normais” e outros programas de 15 ou 20 ou 30 anos atrás.

Voltando ao novo “Ultraman”. O trailer de divulgação pareceu animador, já rolava uma expectativa há meses, então fomos conferir sem procurar maiores detalhes. Com 13 episódios com pouco mais de 20 minutos de duração, o novo Ultraman é… Digamos que é assistível, com algumas qualidades, outros tantos defeitos, mas que deixa uma sensação de “poderia ser melhor”. Ok, bem melhor. Tá, muito melhor, vamos parar por aqui antes que eu comece a xingar os produtores da série.

A principal qualidade que salta aos olhos é a parte técnica. “Ultraman” é animação de primeira, com ótimo acabamento, efeitos especiais sensacionais, uma fluidez de movimentos que parece com a dos videogames mais modernos, permitindo cenas de luta que dão um couro bonito nas briguinhas de rua das séries originais. “Ultraman” também resgata elementos clássicos, como a Patrulha Científica, Shin Hayata (o primeiro Ultraman), Dan Moroboshi (alter ego do Ultraseven), inimigos clássicos como Bemlar, Baltan e outros monstros e alienígenas. Uma decisão acertada foi a de seguir a linha do mangá no qual a animação se inspirou, em que apenas o primeiro Ultraman passou por aqui. Com isso, a história se passa décadas depois do Gigante de Luz salvar o planeta de dezenas de ameaças e voltar à galáxia M-78, e com a Patrulha Científica – agora uma organização ultrassecreta – desenvolvendo o seu próprio Ultraman para defender a Terra.

Por outro lado, esse é o maior problema da série. Comecei a assisti a “Ultraman” imaginando que veria um gigante com mais de 40 metros de altura surrando monstros do mesmo tamanho enquanto Tóquio se transforma em paçoca de concreto. Mas o Ultraman que ganhamos é um adolescente (!) de pouco mais de 1,70m de altura, filho de Hayata, que assim como o pai possui um tal “fator Ultra” (?), e por isso é escolhido para usar uma armadura (??) que emula os poderes do herói. O resultado é que temos lutas muito boas contra os oponentes, mas milhas e milhas distantes da ameaça e da grandiosidade da antiga série de TV. Se pintassem a armadura de vermelho e dourado e falassem que era o Homem de Ferro, ninguém estranharia.

Além disso, a atração da Netflix sofre de outros defeitos crônicos das animações nipônicas. Um deles é a eterna falação dos antagonistas no meio das batalhas, como fica ainda mais evidente no irritante oitavo episódio; outro, o fato de que o vilão prefere ficar fazendo as unhas enquanto o herói se transforma ou está conversando com alguém (no caso, o pai), ao invés de liquidar a fatura; a repetição, em formato de pergunta óbvia, de uma afirmação (“Por sorte tenho uma carta escondida na manga”; “Escondida na manga?”); e não bastasse o herói ser um adolescente (obsessão japa de décadas, como em “Evangelion”), temos ainda uma subtrama com uma cantora pop teen que parece substituir as crianças pentelhas de outrora.

Ah, e quase me esqueci do principal defeito: a trama principal. Sério, são tantas reviravoltas que chego o momento em que você se pergunta o que eles querem coma história, se é mostrar o moleque se tornando o Ultraman, os aliens a fim de invadir a Terra, se fulano é do bem ou do mal… Os primeiros episódios seguem uma linha, depois embarcam em outro caminho e zás!, quando percebemos, o lance é outro totalmente diferente.

Apesar dessa Carreta Furacão de defeitos, “Ultraman” consegue se salvar pelas qualidades técnicas, resgatar meio limão da antiga magia e ser fácil de emendar pelo menos três episódios de uma vez, sem cansar. Mesmo não provocando o mesmo fascínio de quando éramos moleques, esse novo Ultraman não nos faz sentir vergonha do passado – e isso já é alguma coisa.

Mas uns 38 metros a mais não seriam nada mal.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

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