A lembrança que me vem da casa onde morei na Rua General Gomes Carneiro, número 39, apartamento 101, no Bairro Fábrica, chega sempre com a sala entupida de gente. Naturalmente com a presença dos meus pais. Meu irmão. Os vizinhos e os colegas, peladeiros dessa rua, onde jogávamos futebol. Essas peladas aconteciam aos sábados, à tarde. Peladas?
Segundo a Wikipédia, “é o nome dado no Brasil a uma partida recreativa de futebol com regras livres, normalmente sem a preocupação com tamanhos de quadra/campo, condição dos calçados e uniformes, marcações básicas, impedimentos, faltas, tempo de jogo, sendo tudo resolvido em consenso pelos jogadores. E começavam quando o meu pai, “Rivelino”, chegava de viagem. Ele era o maestro do grupo. Dentro e fora do futebol. Nós sempre o esperávamos ansiosamente.
Ele entrava quente, acelerado na rua, com o seu adorável e bem tratado, fusca. Meu pai era viajante. E teve vários Fuscas. Eles só mudavam de cor. A marca, não. Uma vez fusca. Sempre fusca. Que nem torcer para o Flamengo. Do fusquinha branco, eu sou capaz de lembrar da placa: os números eram 6-5-4-0. Teve um azul, também; fuscão, tipo “Fafá de Belém, por causa dos faróis traseiros que eram grandes, numa referência aos seios da cantora. O/a leitor/a, lembra desse modelo? Meu pai gostava de carro. Mais ao fim de sua vida, cultivou zelo e cuidados ao Corcel II, ano 79, uma herança que ficou.
Depois de seis anos, foi vendido. Nossa, como foi difícil desfazer desse carro! A sensação que dava, era a de que o pai ainda estava no carro. Nessa memória, eu tinha lá os meus 20, 21 anos de idade, já na Faculdade de Serviço Social da UFJF, e tinha, na rua, o lugar de encontrar os colegas, os amigos. Brincar. Jogar futebol com eles. E o mais sensacional que percebo, na minha história, é que pude jogar com o meu pai. Só mesmo o futebol para fazer essa mágica. Nos aproximar. Não, que a nossa relação tenha sido ruim, nada disso. Pelo contrário, mas o futebol nos deu cumplicidade. E amor um ao outro. Que muitas das vezes, dentro de casa, não tínhamos esse espaço de aproximação e de tabelinha prá fazer um gol. A rua para mim foi meu espaço de socialização, ao modo de conversas e papos de rua, de moleques e adolescentes que estão descobrindo o mundo. O futebol teve uma grande ascensão na minha vida. Pelo meu pai e pelo que ele me deu através dessas peladas de sábados à tarde na Rua do Quartel. As ruas de hoje representam perigos por toda a parte.
Vizinhos. Ter bons vizinhos é uma raridade. Graças a Deus, onde moro temos vizinhos muito amáveis e generosos. A começar pelo síndico. Alô, amigo Beré! Andando um pouco mais para o Centro da cidade, sob a atmosfera de proteção ao coronavírus, observo pessoas que têm na rua, ao contrário do que eu vivi e relatei acima; lugar para morar, comer e dormir. São as pessoas que estão em situação de rua. A rua para elas não tem nada de divertido. Não são vistas e muito pelo contrário, ninguém as desejam por perto. Uma realidade humana produzida socialmente e que tem que ter a participação de todo mundo. Para o futuro, vejo, infelizmente, perspectivas de crescimento, diante do quadro de desemprego estrutural e retirada de investimentos, nos já minguados recursos para a área de assistência social governamental. Num país que cultiva a morte, sem afeto, sem empatia e compaixão com as pessoas a saída é começar de novo. A saída é seguirmos em frente e resgatarmos valores que tínhamos quando meninos, na rua do Quartel, que quando a nossa bola caía no quintal do vizinho, ele a devolvia imediatamente. Sem bravura e sem raiva. Éramos felizes e sabíamos, sim.
Porque nossa brincadeira era séria
Nossos pais, no meu caso, principalmente minha mãe, me tinham nas mãos. Onde o estudo sempre esteve em primeiro lugar. O que me fez uma pessoa maior, bem maior de onde vim e que hoje, posso ir mais além, bem mais. Cresci para os lados e para dentro de mim. O mundo tornou-se possível. E acredito que podemos transformá-lo num lugar bom para se viver. Bons vizinhos, a gente faz dentro de casa. Necessários e importantes que são, ainda mais, para as pessoas idosas, nesse tempo de isolamento social.