“É uma santa. Diziam os vizinhos. E D. Eulália apanhando. É um anjo. Diziam os parentes. E D. Eulália sangrando.” Assim, a escritora Marina Colasanti inicia seu conto “Porém Igualmente”. Ao usar os verbos no gerúndio: “apanhando” e “sangrando”, a autora dá a ideia de continuidade, de uma ação que se repete. E, mesmo ao se repetir, não é capaz de mover vizinhos e parentes a fim de ajudarem sua protagonista. No conto, eles assistem à violência e seguem à risca o velho ditado que diz: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Assim também é na vida real. As pessoas não se intrometem. Elas têm medo e se calam. Geralmente, as mulheres vítimas de agressão dentro de casa também se calam, e o silêncio perpetua a violência!
Em Juiz de Fora, cerca de dez denúncias dos mais diversos tipos de violência física e verbal chegam, diariamente, à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Se ampliarmos o foco, abrangendo para as outras 85 cidades da região que integram a 4ª Região Integrada de Segurança Pública, os números, alarmantes, quantificam uma tragédia que não para de totalizar vítimas. Dados obtidos pela Tribuna apontam que, em 2018, mais de mil vítimas sofreram algum tipo de violência doméstica a cada mês, uma média aterrorizante de 33 casos por dia. Não podemos esquecer, contudo, que existe a subnotificação, visto que a mudez das vítimas escamoteia essa realidade traduzida pelas estatísticas.
Resolvi abordar esse tema na coluna, porque há tempos faço cobertura nessa área e, nesta semana, mais um caso de violência contra a mulher me tirou do chão. Uma jovem, de 24 anos, teve 40% do corpo queimado pelo ex-namorado, que jogou sobre ela uma panela com óleo fervente, porque não queria aceitar o término do relacionamento.
O agressor, que ainda não foi encontrado, abusou da confiança da vítima e aproveitou o momento em que ela dormia para praticar sua vingança. A jovem agora se recupera de queimaduras de 2º e 3º graus, no Hospital de Pronto Socorro. Ela foi atingida no rosto, no peito e nos braços. Quando receber alta, a moça terá que reiniciar sua vida, aprender a lidar com uma nova realidade e superar traumas e sequelas. O crime, a princípio de lesão corporal, já é tratado como tentativa de feminicídio doloso pela Polícia Civil, uma vez que o ex-namorado sabia que a vítima poderia morrer e, ainda assim, continuou com a agressão. A família da jovem clama por justiça. Nós, enquanto sociedade, também!
É preciso um basta, e o debate sobre gênero, que tem sido tão mal interpretado por uma grande parcela da população, é uma das armas mais eficientes para a desconstrução desse princípio machista e patriarcal arraigado na sociedade, que corrobora o papel de objeto da mulher diante do homem. Só o conhecimento, o respeito e o senso de igualdade têm o potencial para criar um movimento contrário a esse estado de coisas. No final do conto de Marina Colasanti, vizinhos e parentes se surpreenderam na noite em que, “mais bêbado que de costume, o marido, depois de surrá-la, jogou-a pela janela, e D. Eulália rompeu em asas o voo de sua trajetória”. Temos que acordar, virar esse jogo e meter a colher sim, reescrevendo o antigo ditado, antes que mais outras D. Eulálias, não as da ficção, voem para sua morte, usando asas de anjo!
Denúncias sobre violência doméstica podem ser feitas à polícia pelos disques 180 e 181.