A tacanhice ideológico-moral que ora está instalada na administração do Brasil apontou, mais uma vez, seu ódio para o cinema brasileiro. Nesta semana, veículos de imprensa divulgaram a intenção deste governo mergulhado no recalque de suspender um edital, publicado no ano passado, para a produção de audiovisuais. A seleção foi alvo de críticas por parte de nossos governantes, porque prevê a categoria diversidade de gênero. A temática de sexualidade é algo que mexe de forma vultosa, para não dizer até estranha, com quem hoje ocupa as posições de mandatários da nação. Existe uma preocupação exacerbada com o que os brasileiros andam fazendo entre quatro paredes.
A própria Ancine, que é a nossa Agência Nacional de Cinema, que tem entre suas responsabilidades liberar recursos do Fundo Setorial de Audiovisual, foi ameaçada de ter as cabeças degoladas de sua diretoria. Aqui é bom lembrar que a decapitação é uma barbárie que tem sido usada por facções criminosas brasileiras como forma de intimidar seus inimigos. Vide o que aconteceu, recentemente, num presídio de Altamira, no Pará, onde um massacre terminou com 58 presos mortos. Em vídeos que circularam nas redes de internet aparece um dos presos arremessando uma cabeça degolada contra outras cinco já no chão e, em seguida, ele pisa num dos crânios para simular passes futebolísticos, como se conduzisse uma bola.
As obras que assanharam a cólera de nossas autoridades palacianas foram as produções audiovisuais “Transversais”, “Religare queer” e “Afronte”. A primeira trata do cotidiano de cinco pessoas transgênero que vivem no Ceará, e a última aborda a realidade do cotidiano de homossexuais negros no Distrito Federal. Também é bom não esquecer que o governo já tinha conflitado, em abril, com uma propaganda do Banco do Brasil, na qual apareciam jovens negros, entre mulheres e homens, e um dos personagens do comercial era uma transexual. Por dar visibilidade a este tema, a propaganda foi retirada do ar e o diretor de marketing do Banco do Brasil foi demitido.
Na verdade, o audiovisual brasileiro tem sido uma pedra no sapato dos comandantes do país. A Ancine já tinha sido atemorizada de ser privatizada ou extinta, caso não fosse possível usar filtros nas produções nacionais. Na ocasião, o filme “Bruna Surfistinha”, que tem a atriz Deborah Secco como protagonista, foi alvo de críticas. Inclusive esse assunto foi tema desta coluna. Esses ataques que, cada vez mais, têm se tornado frequentes à cultura e à arte nos remetem a um tipo de autoritarismo típico de ditaduras instaladas em outros lugares do mundo. Também nos faz pensar, de forma lamentável, em Joseph Goebbels e seu Ministério da Propaganda, que, entre 1933 e 1945, na Alemanha, produzia um cinema sob encomenda para Hitler, cujo objetivo era controlar de forma absoluta a arte, a informação e a imprensa como forma de subjugar o povo.
Como disse da outra vez que usei este espaço para defender o cinema brasileiro, temos que entender que os filmes não são apenas entretenimento, mas um tipo de arte com potencial de despertar o temor daqueles que sentem desdém pelo diferente e que são inabilitados para amar o que desconhecem. O cinema é uma forma de arte revolucionária, uma vez que, por meio dele, temos condições de aprender a enxergar o mundo pelos olhos dos outros. Nos concede a dádiva de viajar no tempo para conhecer o passado e o futuro, contribuindo, assim, para nossa melhor compreensão do presente. Ele tira do silêncio vozes sufocadas e traz à tona o que antes estava escondido. É uma arte de promoção da empatia, da conscientização e é, justamente por isso, considerada tão perigosa para aqueles que não têm apreço por valores essenciais à vida, como a liberdade e a igualdade. Um viva para o cinema nacional e à sua soberania!!!!