Cenas que o Brasil pensava que já não existiam desde o fim da ditadura, em 1985, voltaram a fazer parte de nosso cotidiano. Estamos ao sabor de forças que já não se envergonham em dizer que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá”. O que a primeira vista soaria como frase de efeito, uma vez que somos regidos por uma Constituição, mostra o perigo destes tempos vividos. Tal afirmação, que poderíamos considerá-la como “sem noção”, faz parte do arcabouço teórico e estratégico de quem hoje ocupa as posições de mando do país.
Como temos lido nos jornais nesta semana, estamos sob o poder de um Estado “cuja inspiração resulta das trevas”. Um tempo que se anuncia de forma nefasta e traz em seu bojo intolerância e repressão de pensamento, se coloca contrário ao pluralismo de ideias e despreza a democracia.
Os limites foram perdidos, pois, até o amor, nas suas mais variadas formas, desperta a ira do Estado e daqueles que coadunam com sua visão de mundo. Tentaram censurar o beijo, como se um beijo pudesse fazer mais mal do que a letargia governamental em garantir ao povo cuidados de saúde, educação de qualidade, trabalho para os desempregados, mobilidade urbana digna e segurança para andar nas ruas.
A censura que ora reincide é marca do Brasil do passado e do contemporâneo. Da era colonial ao momento da abertura democrática, os brasileiros vivenciaram variadas maneiras de fiscalização sobre a cultura, os livros, o teatro e a imprensa praticadas por órgãos do governo. Neste Brasil atual, porém retrógrado, a investida contra o beijo não se trata de um caso isolado. O mesmo ódio que se abateu contra a Bienal do Livro, na última semana, foi responsável por censurar uma exposição de arte, em 2017. Também é esse mesmo rancor que ataca a produção nacional de cinema e conduziu as tentativas de alteração da legislação educacional para impedir a discussão de temas políticos e de sexualidade nas escolas.
Por falar a respeito da escola, esta semana, tomamos conhecimento de que o livro “Meninos sem pátria”, do autor Luiz Puntel, foi proibido em um renomado colégio particular no Rio de Janeiro. A obra integra a célebre Coleção Vagalume voltada ao público infantojuvenil e tem quase um milhão de exemplares vendidos. O livro é inspirado na história do jornalista José Maria Rabelo, que, perseguido pela ditadura militar, foi obrigado a se exilar do país com esposa e sete filhos por 16 anos. Por acreditarem em uma suposta “doutrinação”, um grupo de pais se revoltou com a indicação do livro, fazendo a direção do colégio suspender a leitura.
Em contrapartida, outro grupo de pais e estudantes protestou contra a censura. Sobre o episódio, o autor de “Meninos sem pátria” afirmou na imprensa que: “Papel do professor é mostrar caminhos aos alunos, sem fazer julgamentos. Não cabe aos pais determinar o que deve ser lido. Fatos e história são incontestáveis”. E ele não deixa de ter razão, é na escola que aprendemos a ter senso crítico. Essas amostras de censura estão dizendo para nós que é hora de ligar os sinais de alerta, pois elas estão distante do jogo democrático, são contrárias à Constituição e ferem princípios da dignidade humana.