“Seu policial, aqui… É porque aqui em casa não tem nada para a gente comer. Aqui, minha mãe só tem farinha e fubá para a gente viver”, diz o menino ao telefone em uma ligação para a Polícia Militar. O pedido de socorro é de Miguel Barros, de 11 anos, morador de Santa Luzia, município na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A chamada inusitada ao 190 fez os policiais verificarem pessoalmente o que estava acontecendo. A criança decidiu sozinha fazer a ligação, depois de ter visto a mãe chorar. Os irmãos mais novos estavam reclamando de fome, e a dona Célia, mãe de seis filhos, só tinha, em casa, fubá e água, que já vinham comendo há quatro dias.
A polícia chegou a pensar que se tratava de uma denúncia de abandono de incapaz ou de maus-tratos, mas, ao ver a situação da família, os policiais se juntaram para ajudar. Eles conseguiram uma cesta básica para entregar à família. Um dia depois do pedido de socorro, no almoço na casa de Miguel, teve arroz, feijão e linguiça.
A fome desse menino é igual à de outros cerca de 30 milhões de brasileiros que estão de barriga vazia, sem saber quando vão comer de novo. Não é a primeira vez que escrevo sobre a fome nesta coluna, também não deve ser a última. Por isso, já sei que vou receber os comentários do tipo: “ah, e o fique em casa e a economia a gente vê depois?” ou “ah, mas tem a guerra da Rússia contra Ucrânia!”. Formas de passar o pano para a consciência e conseguir repousar a cabeça no travesseiro à noite sem remorso.
A fome no Brasil não é um problema atual. Já atravessa muitas décadas. Essa é uma clareza que todos nós, nascentes nesta terra, temos. Sabemos disso sem que seja necessário nos dar mais explicações. É certo que o risco de fome aumentou ao redor do mundo diante dos impactos econômicos da pandemia de Covid-19. Também é certo que a situação se tornou particularmente grave no país. Estudo do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas mostra que a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou sua família, durante algum período nos últimos 12 meses, subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, patamar recorde da série histórica iniciada em 2006.
É também a primeira vez que o nível de insegurança alimentar em nossa nação supera a média mundial de 35%. Considerando a média de 120 países, a insegurança alimentar aumentou 1,5 ponto percentual no mundo, contra 6 pontos percentuais no Brasil, ou seja, o aumento equivale a quatro vezes o registrado na média mundial.
Diante do pedido de socorro de Miguel, que teve repercussão nacional, fico pensando nos homens e nas mulheres de Brasília que se dizem do poder, que ocupam cargos no Planalto e no Congresso. Não deixar o povo brasileiro sentir fome deveria ser a principal bandeira deles. Acabar com o medo das famílias de ter o prato vazio deveria ser a regra básica para quem se aventura pelos meandros da linda arquitetura branca e moderna da capital federal.
Nossos governantes e legisladores não deveriam pregar os olhos enquanto meninas e meninos, como Miguel, vão para a cama sem ter o que comer. Mas eles dormem e acham justo o seu sono. Enquanto eles dormem, políticas públicas não chegam para a população, ou melhor, chegam agora, às vésperas das eleições. Nenhuma novidade! Enquanto eles dormem, somos nós que precisamos acordar!