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A um passo do holocausto

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Vivi recentemente uma experiência inusitada em Barbacena (MG). Convidada a fazer um debate após a apresentação do documentário Holocausto brasileiro, dirigido por mim e Armando Mendez, e exibido pela HBO, a plateia, assim como a cidade, estava dividida entre os que acreditam e aqueles que continuam a duvidar que as histórias reveladas pelos sobreviventes do hospício sejam mesmo reais. E, entre os que duvidam ou defendem aquele modelo de segregação, há muita coisa em jogo. Vergonha de ter assistido passivamente às mortes de 60 mil pessoas, heranças culturais de uma sociedade capaz de naturalizar o mal e os abusos aos quais os pacientes foram submetidos por décadas, sensação de impotência diante de uma engrenagem que era muito maior do que o inconformismo de uma só pessoa.

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Acolhida por muitos e atacada por outros, fui surpreendida pela postura de uma jovem psiquiatra, apontada como alguém comprometida com a causa, mas que acusou frontalmente a política de saúde mental do país de promover desassistência. Citando números desatualizados, ela afirmou que o fechamento de leitos não foi acompanhado pela abertura, em quantidade suficiente, de vagas em serviços substitutivos, cuja lógica é o tratamento em liberdade. Naquele instante, reconheci os desafios impostos por um modelo que prioriza o ser humano e que tira da invisibilidade homens e mulheres confinados ao isolamento por 30, 40, 50 anos. Enxergá-los exige muito de nós. Exige mudança de olhar e a multiplicação de estruturas capazes de devolver dignidade aos esquecidos sociais.

No entanto, é impossível não notar todo o esforço e comprometimento dos trabalhadores de saúde mental na busca de soluções para um problema que ninguém quer: o doente. Se é fato que não há ainda serviços substitutivos no país em quantidade suficiente para atender pessoas com transtorno mental, é impensável continuar a defender o hospital como lugar de moradia. Não é e nunca deveria ter sido. E me preocupa assistir ao levante de ideias que julgávamos ter sido abolidas pela luta do movimento antimanicomial.

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Diante do impasse entre o velho, o novo e a ameaça de retomada de tempos medievais, me vem à cabeça a história da paciente que respondeu com violência a toda violência a qual lhe foi imposta. Internada no Colônia por um quadro de epilepsia, ela passou por várias fases em mais de 30 anos de institucionalização. A automutilação, a apatia por causa dos castigos físicos a que foi submetida até tornar-se agressiva com o outro. Para defender-se, ela mordia. Uma junta médica decidiu, então, reunir-se na década de 1980 para encontrar uma forma de dar fim ao comportamento antissocial da paciente. Ao final, o veredito: arrancar todos os dentes da infeliz.

Soluções simplistas podem ser absurdamente equivocadas e privadas de sentido. Não ter vagas para todos em situações de crise em hospitais gerais ou para pacientes estabilizados em casas lares, unidades de acolhimento e centros de atenção psicossocial não pode ser a justificativa para se aventar a volta dos manicômios ou a permanência de pessoas em ambientes de confinamento. É preciso que a sociedade civil e o poder público se mobilizem pela cobrança da garantia de espaços humanizados, como as bem-sucedidas residências terapêuticas. Aceitar o retrocesso é como validar um novo holocausto.

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